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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

O manto da invisibilidade

Os Tupinambás e a ancestralidade roubada
18/07/2024 | 05h00

Nenhum artefato indígena ou africano conquistado no período colonial e exibido em museus europeus é lícito. Todos em sua esmagadora maioria, se não na totalidade, são fruto de roubo, saque, extermínio de culturas, escambo em bases desiguais, deslumbramento pelo exotismo e vontade de exibicionismo. É uma afirmação radical, sei bem, mas em contrário a ela o quê?

Alguém poderia dizer que chegaram aos locais onde passara a morar tão longe de quem os criou porque foram presentes, ofertas, agradecimentos, pesquisa científica… Em pleno ano de 2024 do século 21, depois de todo o inferno de morte colonial, este argumento não se sustenta nas pernas nem meio segundo, quanto mais pelo tempo dos séculos de espera dos povos que olhavam para suas próprias coisas como objetos de desejo inatingíveis.

O Manto Tupinambá foi devolvido ao Brasil pelo Museu Nacional da Dinamarca. A majestosa vestimenta toda coberta por penas vermelhas da ave guará, era usado em rituais e ocasiões específicas por lideranças indígenas. Os chamados “assojaba” ou “guara-abucu”, na língua tupi antiga, são um patrimônio indígena de todo o país. Ter um deles voltando (só de onde saiu o que chegou agora existem outros quatro) significa ter um ancestral retornando à casa.

O Manto voltou e nenhum de seus descendentes esteve lá para abraçá-lo e recepcioná-lo. Nenhuma festa no reencontro tão aguardado desde que Amotara, liderança do Povo Tupinambá de Olivença, reconheceu em 2000 o artefato que pertencia ao seu povo e uma enxurrada de pedidos passaram a ser protocolados e movimentos articulados para que o retorno acontecesse.

O Manto chegou e foi recebido pelos braços brancos das universidades, no caso da UFRJ, na frieza dos argumentos de sempre sobre capacidade de conservação etc. e tal; e na hipocrisia das relações institucionais que ainda agradeceram ao museu dinamarquês, afinal, foi muita gentileza devolver o que nunca foi deles. Que dirigentes acadêmicos façam este papel, não nós, o povo.

O entrevero entre as comunidades indígenas que estão há anos envolvidas com este resgate (sim, foi um sequestro) é grande e eles, os indígenas, obviamente têm razão. Não se trata apenas de uma “desfeita protocolar”. O que está em jogo é a posse e o direito à história, além do sagrado de populações inteiras aviltado por mais de cinco séculos. O que está em jogo é o direito a imaginar um futuro a partir das próprias referências e memórias restituídas. Não é pouca coisa, pois um povo orgulhoso de si e ciente da própria identidade é um povo que não se curva.

Não vale discorrer neste espaço em que bases se davam as coletas destas peças confeccionadas nos séculos 16 e 17. Estudiosos mais abalizados já o fizeram em quantidade e qualidades suficientes para que tiremos do terreno da “boa-fé” e da “diplomacia” a retenção por tanto tempo de riquezas e patrimônios culturais tão preciosos.

Mantos sagrados invisíveis aos seus por quase 400 anos… Apenas volto à minha história oral familiar que, como a de grande parte das pessoas deste país, inclui uma indígena “pega no laço”. No meu caso, em Lençóis, na Chapada Diamantina baiana. Uma tupinambá, certamente. A avó da minha avó. Fico imaginando se esta ancestral longínqua teria algum dia visto, ainda que de longe, manto semelhante. Nunca saberei. O que sei é que os indígenas que nascerem agora terão ao menos um para admirar de perto… Será?

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