As instituições religiosas gostam de indicar coisas difíceis e complexas que só os especiais conseguem fazer. Apontam para as distâncias. Quem olha para Deus, nesses ambientes, olha vagamente para longe, seja para o horizonte ou para as nuvens. Olhos fechados e músculos tensos como se assim as distâncias pudessem ser vencidas para garantir um toque cerimonioso no divino.
A performance religiosa pode ser bonita e até proporcionar gratificações para os envolvidos. No entanto, cansa, esgota e frustra.
Quando Jesus ensinou aos seus amigos a orar, ele não disse “saiam”. Apontou para a direção oposta e disse “entrem”. O mestre não indicou nenhum endereço, muito menos sugeriu distâncias. Quando quiser orar, entra no quarto e conversa. Aprendi que Deus mora na distância e para estar com ele eu teria que me arrumar e sair. Mas Jesus desconstrói quando ensina que oração é se desarrumar e ficar em casa.
A oração tão simples está mais para o poema do que para o mandamento. Daí, alguns se perturbam. Uma oração desprovida de mecanismos de controle que não se apoia em gestores da fé que precisam de reconhecimento público. A oração da qual fala Jesus é prosaica, com direito a risos e sem músculos tensos.
Há quem prefira “exercer a própria justiça” em público para maravilhar as multidões em êxtase.
Há quem faça o bem e “toca trombeta” para si mesmo. Registram seus feitos com a intenção de publicá-los para inspirar outras vidas.
Há quem prefira “orar em pé nos templos” em alto volume com linguagem rebuscada. Falam pelos cotovelos como se a boa lábia pudesse convencer o ouvinte.
Há quem goste de jejuar para chamar atenção. Fica sem cor, descabelado, com mau hálito e uma expressão estranha no rosto. Querem impressionar a Deus e às pessoas.
Quem vive de aparência não suporta a indiscrição do espelho do quarto. Preferem os espelhos dos salões públicos cheios de luzes e ângulos para ressaltarem as aparências vistosas. Existe uma religiosidade iluminada que nada tem a ver com a Luz natural.
Sabe o que circunda a oração do Pai Nosso ensinada por Jesus?
Todos os casos que ele conta como opostos ao que ele quer ensinar falam de HIPOCRISIA. Não é novidade, no ambiente religioso é muito comum nos depararmos com comportamentos públicos que nada tem a ver com a vida privada. Hipocrisia como duplicidade.
Em diálogo com essa realidade, Jesus ensina uma oração íntima sem plateia e muito menos avaliadores. Finalmente aprendi que não há lugar melhor para falar com Deus do que a minha casa, no quarto, de preferência com a porta fechada. Tudo bem que isso está mais para a poesia do que para o decálogo. Convivo bem com a bagunça do meu quarto.
Quebrando a banca do sacro comércio
Havia nos dias de Jesus um esquema rentável em torno do templo. Vendedores disputavam espaço para oferecer víveres, cordeiro, novilhos, pombos e outras espécies que seriam oferecidas no altar. Bichinhos sacrificados para que o povo voltasse para casa de mãos vazias e alma lavada. Barraqueiros da fé oferecendo vida abundante através de sacrifícios de vidas.
O cheiro do incenso misturado ao cheiro das barracas que mantinham nas gaiolas os bichos. Açougue estilizado como corredor da morte. Carne fresca comprada não para o alimento, mas para o culto. Os barraqueiros da fé vivem escorados nos muros dos templos porque otimizam espaço e não precisam gastar com as estruturas de ferro e pedra.
A porta do mistério exigia códigos para entrar que só os mediadores conheciam. Os sacerdotes se vestiam apropriadamente e chegavam perto de Deus com mimos e orações do povo trêmulo. Oração era para poucos. Oração era feita com hora marcada no lugar certo. Oração contava com a mediação dos sacerdotes que conheciam as exigências divinas e a desorientação das pessoas. Oração eram palavras ditas e afagos feitos através dos sacrifícios e ofertas.
Oração era uma atividade dispendiosa, difícil e cara.
Neste cenário em que barraqueiros da fé vendiam facilidades, Jesus ensina a orar assim: “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto e, fechando a porta…”
Caramba, o mestre vai quebrar a banca, bagunçar a feira, inviabilizar o mercado, chutar o pau da barraca. Oração tinha lugar certo, hora certa e pessoa certa para mediar. Não pode ser fácil desse jeito. Pensavam os barraqueiros da fé.
No quarto, ritualiza-se o cotidiano de uma forma absolutamente espontânea na nossa cultura. Os móveis não são dispostos de forma a impressionar eventuais visitas, no quarto, os móveis são funcionais, arrastados em função do nosso conforto. O quarto não é lugar de “fazer sala”, antes, lugar de “fazer amor”. Para muitos o lugar mais íntimo da casa.
Nessa intimidade confusa, surge a possibilidade de pronunciar o termo PAI.
Jesus nos disse que oração é intimidade, mas não sem muitas ambiguidades. Alguns, não suportando a amplitude do quarto e o silêncio das noites sem pompas e circunstâncias, preferem pagar para que os cambistas da fé lhes proporcionem a tão desejada mediação.
O caso do Paulinho
Numa quinta-feira chuvosa na Favela da Babilônia/Chapéu Mangueira, num pequeno grupo, conversávamos sobre as nossas experiências com o conteúdo da Oração do Pai Nosso. Paulinho (11 anos) estava calado na roda de conversa, mas, muito atento. Como sempre fazia, no fim do encontro, lanchou e ficou esperando que alguém lhe desse algo para levar para casa. O pão nosso para ele era literal. Tudo que comia na igreja ou na rua conseguia uma porção para levar para os dois irmãos menores e a mãe (dependente química) em casa. Quando menor, ele viu o pai ser assassinado. Como sempre fazia, antes de subir a ladeira e ir embora, ele me deu um abraço apertado e perguntou baixinho:
– Dema, na minha casa não tem quarto, nem porta, como eu faço para falar com Deus?
Paulinho leu os meus olhos, se contentou com o meu silêncio e seguiu levando os bolinhos de chuva e a garrafa de mate como o pão daquele dia. Na casa do Paulinho não havia pai, nem porta, muito menos pão.
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