Aquilo a que chamamos identidade nacional é, no fundo, a memória histórica que os países constroem de si. Assim sendo, a narrativa histórica é uma questão política e talvez seja a questão política mais importante da vida cívica nacional. A História, a narrativa histórica, não é um só um espaço de saber, mas um espaço de poder. A batalha da produção histórica nacional nunca foi neutra, ou natural, ou objetiva. Nunca foi domínio exclusivo de cientistas políticos, mas uma batalha política que se renova constantemente. Numa elegante formulação, Faulkner escreveu que “O passado não existe. O passado não é sequer passado.” Quem já viveu o suficiente reconhece imediatamente a beleza e a profundidade destas palavras — o passado é o terreno das batalhas políticas do presente. E quando falamos de futuro, quando nos referimos ao tempo que virá, estamos apenas a fazer uma projeção para a frente do tempo que passou.
As divergências sobre o passado são mais profundas e divisivas do que as discordâncias quanto às políticas atuais. A História é um violento campo de batalha feito de relatos que interessam à construção da memória coletiva e de silêncios sobre o que é incomodo recordar. Num belo ensaio historiográfico, Michel-Rolph Trouillot lembra-nos que, para a história ocidental, a época das revoluções do final do século dezoito, foi composta pela revolução francesa e pela revolução independentista norte-americana. Foi assim que aprendemos na escola — nada mais existia. E, no entanto, no mesmo período (1791), ocorreu a revolução haitiana que foi a primeira revolução de escravos da história a ter sucesso. Uma revolução de negros que, para o mundo ocidental esta revolução, nunca foi digna de menção na história universal. Portanto, cuidado, muito cuidado — se o passado é um país estrangeiro, como alguns gostam de dizer, nele se travam as batalhas mais violentas sobre o dito e o não-dito. Sobre o relato e sobre o silêncio histórico.
Esta introdução serve-me para expor e defender a reflexão que proponho — a vida política brasileira está dividida pela História. Aquilo a que a mídia chamam de grande polarização só pode encontrar explicação na intensa discordância social sobre o papel histórico do golpe militar de 1964 (e de outros temas, certamente, mas este em particular). Agora, sessenta anos depois, a polícia relata o planejamento de um outro golpe de estado contra o Estado democrático. Um golpe de força. A polícia dá também conta de pormenores macabros, como o projeto para assassinar dirigentes políticos — e a sociedade brasileira não mostra sinais de indignação. Uma parte dela desvaloriza. Uma parte dela menoriza. Uma parte dela recorre a desculpas inacreditáveis — foi só planejamento, não foi execução, logo não há crime. Uma parte dela pede mesmo silêncio sobre o caso já que o alarme nada mais faz do que servir à esquerda, aos comunistas, aos usurpadores do poder, àqueles que põem em causa as tradições brasileiras, nomeadamente a cultura de violência e desigualdades sociais.
Impressionante. Realmente impressionante. Nunca pensei que, em face do que foi exposto, a direita política decente não condenasse imediatamente, com palavras duras, o que aconteceu. Infelizmente, não foi isso que se passou. Assim sendo, esta história recente só vem confirmar como o consenso democrático está longe de estar consolidado no Brasil. Pela minha parte, nunca fui entusiasta da punição penal para resolver dramas históricos e sempre admirei a forma como a África do Sul ultrapassou o trauma do apartheid — verdade e reconciliação. O Brasil não fez nem uma, coisa nem outra — nem puniu, nem exigiu saber a verdade. O Brasil abdicou de conhecer a sua própria história. E, no entanto, quando desconhecido, o passado sempre regressa. E quando regressa, vem a galope.
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