“Tinha medo que o governo israelense fosse tão louco a ponto de atirar em Greta. Mas eles não são tão estúpidos assim” diz Nimrod Flaschenberg, ativista, escritor e analista, sobre o ataque ao veleiro Madleen, da Flotilha da Liberdade, interceptado pelo governo de Israel neste domingo (08).
A embarcação, que tentava abrir um corredor de ajuda humanitária para levar alimentos e medicamentos para Gaza, foi sequestrado pela Marinha israelense a aproximadamente 185 quilômetros da costa.
Segundo um relatório recente da ONU, uma em cada 5 pessoas passa fome em Gaza.
A população está enfrentando “altos níveis de insegurança alimentar aguda” e o território passa pelo tipo mais grave de crise de fome, segundo o relatório.
O governo de Israel tem impedido que alimentos e medicamentos cheguem à Gaza e a Flotilha da Liberdade historicamente tenta furar esse bloqueio.
Os ativistas que estavam nesta embarcação, entre eles Greta Thunberg e o brasileiro Thiago Ávila, foram levados e podiam assinar um termo e serem deportados ou ficarem em um centro de detenção. Thiago se recusou a assinar o termo e segue preso. Desde domingo, está em greve de fome.
Cofundador do grupo de defesa Israelis for Peace (Israelenses pela paz), com sede em Berlim, Nimrod Flaschenberg trabalhou anteriormente como assessor do Knesset (Parlamento de Israel) e gerente de campanha do Hadash, um partido político judaico-árabe de esquerda em Israel.
Em entrevista à coluna, ele diz que temia pela vida dos ativistas e lembrou de quando, em 2010, o governo de Israel interceptou o Mavi Marmara, barco que fazia parte de um comboio que transportava 10.000 toneladas de ajuda humanitária para Gaza.
Na ocasião, cerca de 400 ativistas turcos viajavam na embarcação, que foi interceptada pela Marinha Israelense. Nove ativistas foram mortos e mais de 40 ficaram feridos. “Foi um massacre terrível” , diz Flaschenberg.
Ao mesmo tempo, o israelita acredita que a estratégia foi acertada – uma maneira de cobrar posicionamento dos governos ocidentais. “Acho que é exatamente isso que a sociedade civil precisa fazer. Usar seu perfil público para desafiar os mecanismos de repressão e destruição”.
Sua organização, Israelis for Peace (Israelitas pela Paz), quer ocupar lugar no discurso público e denunciar a instrumentalização das acusações de anti semitismo.
“Acusações de anti semitismo são usadas como armas. Mas deveríamos trabalhar para expor esse mecanismo. É importante que a gente diga as mesmas coisas que outras pessoas estão dizendo, porque é muito mais difícil chamar a mim de anti semita do que a palestinos, alemães, franceses ou portugueses”.
Pode falar um pouco sobre sua história? Como você se envolveu no ativismo e com o Israelis für Frieden (Israelenses pela Liberdade) e o que faz essa organização?
Eu sou de Tel Aviv. Em Tel Aviv, eu era ativista, consultor político e gerente de campanha do Hadash, que é um partido socialista judeu-árabe. É o partido de esquerda não sionista mais proeminente.
Me envolvi em diferentes atividades no partido por muitos anos. Então, venho da política partidária e me mudei para Berlim com minha esposa há três anos.
Minha profissão, no fim das contas, é a política. Ainda trabalho remotamente para Israel em diferentes coisas, assessorando e fazendo coisas relacionadas à mídia e assim por diante.
Mas, em determinado momento, percebi, junto com alguns outros amigos de esquerda israelenses, que há uma lacuna no mapa político da Alemanha no que diz respeito a Israel-Palestina, que é uma perspectiva fortemente anti ocupação, antiguerra e a favor dos direitos palestinos, mas que também fala do ponto de vista israelense.
Então, pensamos que essa mensagem, devido à forma distorcida como a narrativa sobre Israel-Palestina é conduzida na Alemanha, poderia ser muito útil para levar o discurso a uma posição um pouco mais forte e crítica contra Israel. Essa ideia, na verdade, começou dias antes de 7 de outubro.
Depois de 7 de outubro, algumas semanas depois de sairmos do choque, todos decidimos que agora era realmente muito necessário. E então começamos a protestar.
A ideia desde o início era construir uma organização que não apenas organizasse manifestações, mas que ocupasse um lugar no discurso público alemão e tentasse influenciá-lo de maneira significativa.
Mas a primeira coisa que fizemos, porque era o auge da guerra, foi protestar todas as semanas em frente ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, apelando à Alemanha para que exercesse uma pressão significativa sobre Israel para chegar a um acordo sobre os reféns e um cessar-fogo.
E pedindo à Alemanha que parasse de enviar armas para Israel e que exercesse pressão internacional para o fim dessa guerra de destruição. Então, fizemos isso por cerca de 9 ou 10 meses, todas as sextas-feiras, na neve e no sol.
Mas também tentamos falar com políticos, com a mídia, fazer alguns eventos públicos, para trazer a voz da esquerda israelense para o discurso alemão de uma forma significativa.
A Flotilha da Liberdade, que transportava ativistas de todo o mundo em missão humanitária e que tentava furar o bloqueio e chegar a Gaza, foi interceptada pelo governo de Israel e os ativistas estão presos ou sendo deportados. O que vai acontecer com essas pessoas agora?
Quando elas estavam no mar, devo dizer que fiquei com muito medo. Tinha medo que o governo israelense fosse tão louco a ponto de atirar em Greta. Mas eles não são tão estúpidos assim. Eles serão deportados se assinarem um documento ou ficarão presos se negarem assinar.
Acho que parte dessa estratégia foi inteligente por causa disso, né? Por ela estar a bordo e pessoas de vários países, meio que obriga os países a se posicionarem…
Sim. Acho que é exatamente isso que a sociedade civil precisa fazer. É exatamente isso que os ativistas precisam fazer, usar seu perfil público para desafiar os mecanismos de repressão e destruição.
Me lembro que em 2010, houve a frota Mavi Marmara. Era uma frota que veio da Turquia, também de ativistas de direitos humanos.
E o exército israelense invadiu o navio e matou 09 pessoas. Eles alegaram que tinham algumas facas ou algo assim. Ninguém sabe ao certo. Foi um massacre terrível.
Podemos dizer que o governo de Netanyahu é um governo de extrema-direita. E muitas vezes qualquer oposição ao que este governo está fazendo em Gaza é rotulada de antissemitismo. Como familiar de judeus sobreviventes, digo que não concordo com o genocídio de Netanyahu. Você considera que as ações deste governo representam o povo judeu?
Penso que elas não representam o povo judeu. Também acho que já não representam o povo israelense.
Para ser sincero, talvez em determinada altura o tenham feito, mas agora não.
Toda esta falsa utilização do antissemitismo como meio de suprimir as críticas a Israel é um projeto muito tático e muito cínico que a extrema-direita e a direita israelense em geral tem construído nos últimos 10 anos.
E que utiliza uma série de meios para isso, como a definição de antisemitismo da IHRA (International Holocaust Remembrance Alliance), como a associação entre anti semitismo e anti sionismo, como a acusação, bastante recente, de diferentes ativistas de serem anti semitas porque são críticos em relação a Israel. Este tem sido um meio muito poderoso de atacar as vozes pró-Palestina.
E como podemos reagir? Como podemos responder a estas acusações?
Bem, antes de mais nada, como israelitas, é importante que a gente diga as mesmas coisas que outras pessoas estão dizendo.
Porque é muito mais difícil chamar a mim de anti semita do que a palestinos, alemães, franceses ou portugueses. Por isso, é importante que falemos contra isso.
É complexo explicar como as acusações de anti semitismo são usadas como armas. Mas deveríamos trabalhar para expor esse mecanismo.
No fim de contas, é uma posição muito básica de dizer que a proteção dos direitos humanos, a defesa do direito internacional e a resistência contra atrocidades em massa são os princípios básicos da moralidade e, portanto, não podem ser anti-semitas.
Há outro ponto importante também que é distinguir os judeus do Estado de Israel.
Mas, sabe, essa não é a minha função, porque sou um judeu israelita.
Sim, eu queria te perguntar exatamente sobre a relação dos israelenses com esta guerra, porque a ideia que se mostra ao mundo é a de que a população de Israel concorda com o que está acontecendo em Gaza.
Antes de mais nada, é importante dizer que temos de distinguir entre os sentimentos que os israelenses têm em relação ao povo de Gaza e aos palestinos em geral e o que pensam sobre a guerra ou o genocídio.
É verdade que o nível de desumanização dos palestinos na discussão pública israelense atingiu um ponto alto depois de 7 de outubro. Eu estou chocado com o quão terrível é o nível de incitamento, desumanização e desprezo pelas vidas palestinas.
Mas há também uma resistência a esta política de guerra eterna que sacrifica os reféns e o futuro dos israelenses.
Acho que as pessoas que são realmente contra o que Israel está fazendo porque temem pelos palestinos continuam a ser uma minoria.
Mas as pessoas que resistem ao que o governo está a fazer por muitas outras razões são uma maioria.
E também esta minoria está mudando nos últimos dois meses. Tem havido um despertar na sociedade israelense sobre as atrocidades que estão sendo perpetradas em Gaza.
Há uma presença cada vez maior no debate público sobre a matança em massa de crianças e a destruição de Gaza.
E algumas pessoas estão, sabe, mudando a forma como falam sobre o assunto. Não o suficiente, mas está mudando.
Porque você acha que isto está acontecendo agora, nos últimos dois meses?
Há várias razões. Uma delas é o fato de Israel ter retomado a guerra após um cessar-fogo, que deixou muito, muito claro que a razão para isto é a promulgação do plano de Trump. É a limpeza étnica da Palestina e não a auto-defesa.
Assim, toda a história da autodefesa desmoronou um pouco. Há também mais declarações de líderes de centro-esquerda que mudam as coisas.
O antigo Ministro da Defesa e Chefe do Estado-Maior do Exército, Bogie Alon, disse há alguns meses que a política de Israel é uma limpeza étnica e um crime de guerra.
Recentemente, o chefe do Partido Democrático, que é o partido de centro-esquerda, disse que um Estado normal não mata crianças como passatempo. E isso abriu realmente uma discussão sobre o que Israel está fazendo.
Estamos falando aqui para o público brasileiro. Como o mundo pode ajudar a acabar com este genocídio?
Acho que o Brasil está relativamente melhor que outros países em termos da sua relação internacional.
Mas ainda há muitos meios diplomáticos e econômicos importantes que o Brasil e outros governos poderiam utilizar para fazer o governo de Israel perceber que isto é ilegítimo e não aceito pela comunidade internacional.
É importante que qualquer força progressista e Estado progressista em todo o mundo, defenda estes princípios e direitos humanos e tratados internacionais pelos quais lutamos tanto no pós guerra.
E isso significa reconhecer a Palestina, significa sancionar Israel de forma significativa.
Significa deixar de vender armas a Israel. E significa isolar o governo israelense tanto quanto possível.
E acredito que esta é também a vontade do povo israelense.
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