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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

O pulso ainda pulsa

E você? Tem fome de quê? Tem sede de quê? O pulso, Arnaldo, ainda pulsa.
22/12/2023 | 05h00

Fim de ano, recesso chegando. A semana que precede o natal é daquelas que fica todo mundo numa correria brutal, todo mundo meio maluco, tentando dar conta não só do que restou dos afazeres do trabalho, mas também dos ritos das ceias, das famílias, dos compromissos gerais que parecem nunca acabar. Na tentativa de escapar desse rush sem fim, e evitando a ansiedade que envolve a véspera de natal, um amigo querido me presenteou com um ingresso para o show dos Titãs. Pensei: poxa, enfim, vou me divertir. Esquecer um pouco desse mundo. Aplacar a angústia, a dor, a insatisfação. Afinal, diversão sim! A solução pra mim. Pois lá fomos nós, toda aquela indumentária de uma arena moderna, mega produção, gentes, muitas gentes, luzes, muitas luzes. Fãs, muitos fãs. Os já consagrados e lendários Titãs entram. Veteranaços e em grande forma, tocam um sucesso atrás do outro. Lembrei da minha adolescência e do disco acústico.

Afinal, sou de 1983, e – criado no interior do interior – só me dei conta da rebeldia dos Titãs no fim dos anos 1990. Até cheguei a ser uma espécie de roqueiro mequetrefe nos idos dos 90, meio gótico suave e cabeludo, ouvia Angra, oras bolas. Gostava muito. Mas meu irmão mais velho e minha prima Aline, roqueira raiz do ABC-Paulista, me mostraram umas cousas boas demais, quando eu nem sabia que um dia ia descobrir que roqueiro  também pode ser reaça. O fato é que me mostraram Pearl Jam, Metallica, Nirvana, Guns, 4 Non Blondes. Aí vieram os clássicos. Black Sabbath, pirei no Ozzy. Descobri Stones, Chuck Berry e etc e tals. Enfim, um conjunto fundamental de inveterados roqueiros que no fim das contas constituíram a gênese da rebeldia de um jovem, acreditem, absolutamente tímido. Pois foi apenas muitos anos depois que botei o devido reparo nos Titãs, no Arnaldo Antunes, no Nando, no Brito, no Branco, no Gavin, no Miklos, no Fromer, no Bellotto, na tchurma toda.

Numa turnê triunfal, e mais rebeldes e atuais do que nunca, os Titãs me lembraram ali, na loucura da multidão em festa, que o que de fato ainda me move é romper com a burocracia kafkiana do cotidiano. É poética e debochadamente zombar do poder e dos poderosos, poetizar a angústia e a alienação, mergulhar no delírio impressionante dos afetos, das soníferas ilhas às sagas de Marvin. Percebi ali que, ao invés de fugir do rush, voltei a ele. Mas com afeto, som e fúria. Indignado com os bichos escrotos que nos esfolam num mundo esgoto. Pensando em cuidar do meu jardim e do jardim do meu amor, no sossego de sua boca e de sua linda luz, mas ainda pensando nos cegos do castelo e das instituições. No balanço da vida e do show, lembro que eu devia ter trabalhado menos, ter complicado menos, mas a polícia (para quem precisa) do trabalho nunca deixou, não é? Vocês sabem, uma vez trabalhador nesse mundo, o epitáfio é certo, destino traçado na linha de produção, seja na fábrica ou na educação.

Capa do disco “Cabeça Dinossauro”, Titãs. 1986.

O fato é que os Titãs me deram mais um sopro vigoroso de vida para atravessar a distância e a porrada em direção à 2024. Me lembraram do que não gosto, não gosto de “bispo de olhos vermelhos.” Nunca é cedo ou tarde demais para dizer adeus aos tiranos, ao espetáculo vazio e insensível do autoritarismo, da violência crônica do homem primata, da loucura da razão econômica do capital e seu fundamentalismo como religião do mundo. Titãs, hino anticapitalista e ao mesmo tempo mergulho vertical nos luxos e fluxos orgíacos do capital e suas contradições. Por isso, minha gente, eu nunca, nunca mais vou dizer o que realmente sinto, eu juro! Juro por Deus. Pois quem espera, quem de fato espera que a vida seja feita de ilusão, pode até ficar maluco ou morrer na cruel solidão. Mas não hoje, hoje cantei, gritei, chorei alto, feliz, no desejo, na alegria e na fúria, vi que a solução para nós é a luta, superando o luto e parte da angústia, até porque qualquer um faz qualquer coisa por amor, liberdade e diversão. Enquanto houver sol. Ainda haverá. É sobre isso, a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte. E você? Tem fome de quê? Tem sede de quê? O pulso, Arnaldo, ainda pulsa.

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