“Oh, maldito preconceito/ Afasta-te no ajeito…” (Cartola)
Em um final de semana comum do mês de janeiro no Rio de Janeiro, a cidade onde mal raiam os primeiros dias do ano já respira carnaval, tem samba. No subúrbio, na zona sul, no centro, em toda parte. Era uma sexta-feira de verão no lugar em que a baiana Tia Ciata escolheu para viver e plantar em seu quintal as raízes do ritmo que viria a ser uma identidade nacional, quando cerca de 15 homens decidiram espancar três mulheres na saída de um famoso espaço… de samba.
Não há nada que justifique as agressões que envolveram motoristas de aplicativos, seguranças da casa e ambulantes. Nada que não seja a transfobia e a misoginia, pois, sim, duas das três agredidas eram mulheres trans. Segundo o relato das vítimas e de testemunhas, elas foram retiradas do Casarão do Firmino com agressividade e, uma vez fora, a frase “pode bater que é tudo homem” foi a senha para o início de uma violência tão brutal quanto descabida.
Chutes no rosto, pontapés, socos… O saldo foi um nariz quebrado, hematomas, escoriações e ferimentos por todo o corpo das agredidas, uma delas retirada desacordada e carregada por uma das mulheres, que também estava ferida. Elas tiveram todos os pertences roubados.
A casa de samba reagiu apenas após o caso viralizar nas redes e ganhar a mídia. Entre idas e vindas acabou informando em nota que lamenta profundamente, se sensibiliza, que vai treinar os seguranças, não aceita racismo, misoginia, LGBTQIAP+ fobia, xenofobia, etc. e tal.
No fim das contas, quando algo semelhante acontece, o silêncio e as notas protocolares são estratégias que sempre contam com a impunidade e o esquecimento. Publica-se uma nota, suspendem-se o acesso a comentários e deixa-se a “onda” passar. Afinal, o carnaval está aí e o povo quer sambar, não é mesmo?
SENHORES DA MORTE
Foi no Rio de Janeiro, mas poderia ter sido em qualquer lugar do território nacional. Este caso é uma tragédia ilustrativa do país que mais mata a população trans no mundo. O Brasil lidera há 15 anos um ranking mundial macabro.
Segundo os dados da Transgender Europe (TGEU) atualizados em 2023, ao todo, foram 320 assassinatos registrados durante o período, e pelo menos 100 aconteceram no Brasil, ou seja, 31% do total.
Entre 1º de outubro de 2022 e 30 de setembro de 2023 a América Latina e Caribe acumulam 73% dos casos de todo o mundo. O Dossiê Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), mostra que México e Estados Unidos aparecem em segundo e terceiro lugares, respectivamente.
Os casos são tão escabrosos, assassinatos executados de forma tão cruel e carregados de doses tão elevadas de ódio, que nenhum filme de terror daria conta de reproduzir. A pessoa mais jovem assassinada tinha apenas 15 anos. O perfil das vítimas é de 80% de pessoas trans negras/ racializadas, a maioria entre 19 e 25 anos, vivendo publicamente com identidades de gênero femininas — travestis e mulheres trans. Tem tudo isso, mas existem números que não entram nesta estatística específica, mas que fazem parte dela.
Não entram nesta conta as agressões, humilhações, escárnios, estigmatizações, exclusões e todo o bolo de sutilezas que massacram de forma tão profunda, que levam pessoas a tirarem as próprias vidas. Suicídios de pessoas trans deveriam entrar na conta do genocídio perpetrado contra a população transgênero no Brasil.
Não é difícil ver que as dores que levam ao profundo sofrimento psíquico podem ser agravadas em qualquer lugar. Em casa, no trabalho, no comércio, na praia… em um samba.
ESQUECIMENTO PERNICIOSO
Não está longe na linha da história o dia em que o samba (arte de pretos e pobres, enraizado em religiões de matriz africana) foi uma expressão cultural marginalizada, perseguida e que poderia levar a violências físicas terríveis, prisões e eventuais mortes. A repressão queria matar o “diferente”, o “indecente”, o “demoníaco”… e seguia uma lógica clara, pois o samba morre quando morre quem samba. Resistimos e o samba não morreu, muito ao contrário, mas falhamos como sociedade ao deixar que esquecessem.
Não há lado bom nesta história de crimes sem castigo. O que há são pessoas que verdadeiramente se unem para muito além dos clichês e “closes” de rede social. Pessoas que socorrem nas ruas, que testemunham, que levam ao hospital, que defendem na polícia, que brigam por políticas públicas, que enfrentam parlamentos hipócritas e fundamentalistas.
Felizmente, por conta desta rede que não se omite nunca, as vítimas do caso relatado no início deste texto estão vivas, muito vivas. A Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) que assumiu a defesa das mulheres e o caso foi judicializado.
Enquanto isso, vamos esperando que o final da letra de “Preconceito”, do mangueirense Cartola, saia vencedora algum dia: “(…) Nosso amor não acaba mais / Viveremos sempre em paz”.
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