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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

O som da banalidade do mal

“Como evitar o som lá de fora? Quem causa o mal que nos invade?”
16/02/2024 | 05h00

Imagine uma casa bem construída, com quintal, estufa, jardim florido, piscina, com boas divisões entre os cômodos, móveis finos. Imagine também que essa casa tem crianças correndo, felizes, brincando, alegres a cantar e a comer à mesa com seus pais. Agora imagine que o ano é o de 1943 e que a casa fica ao lado, quase muro com muro, das instalações do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia ocupada pelos nazistas. A casa pertence ao comandante do campo, Rudolf Höss, um dos mais notórios facínoras que o mundo já conheceu. E que conduziu meticulosamente o extermínio de mais de 2 milhões de judeus.

Tal é o enredo do filme de Jonathan Glazer, “Zona de interesse”, indicado ao Oscar 2024. Diferente de muitas produções cinematográficas sobre o Holocausto, Glazer abre espaço para o cotidiano da família. Os afazeres domésticos, as empregadas, as cenas do casal debatendo trivialidades da vida, a sogra chegando para uma visita, os auxiliares do comandante brindando seu aniversário. Ora, não é que se esconda o genocídio que se passa logo ali ao lado. No entanto, a perspectiva das cenas e os personagens observam a torre de vigilância do campo apenas de longe. Muros altos e arames farpados também, mas os personagens nunca entram no campo e Glazer, assim, não expõe os cadáveres e corpos empilhados, os pijamas listrados, as câmaras de gás e de todo o cortejo de horror ostentado pela Alemanha nazista.

Ao contrário, o filme impõe um cotidiano doméstico e familiar tão trivial que faz o espectador imaginar uma vida naquela mansão idílica e frugal, esquecendo, digamos assim, todos os problemas do mundo. E um dos pontos fundamentais é exatamente esse, como escapar dos horrores do mundo lá de fora? No caso em questão, o “lá fora” é simplesmente o maior complexo de exploração e de extermínio que o mundo já presenciou. Uma fábrica de matar seres humanos com uma racionalidade fria e calculista que levou muita gente, depois de 1945, a duvidar da educação, da delicadeza e da poesia após Auschwitz. Seria possível superar aquele horror todo? O filme de Jonathan Glazer acerta exatamente aí. Afinal, que horror é esse que nos invade? Rudolf Röss, sua esposa Hedwig e seus filhos, são humanos, demasiadamente humanos. Muito longe de serem retratados como nazistas monstruosos e fanáticos, eles aparecem como o retrato comum de uma família também comum com sonhos de estabelecer uma boa vida no campo, perto da natureza.

Mas digamos que a natureza do nazismo invade a mansão a todo momento, de longe é possível ver as chamas e a fumaça das chaminés que lançam a alma de milhões de pessoas no ar do entorno do campo, essa fuligem humana é respirada ali por todos da casa a todo momento. Essa fuligem é o resultado não da monstruosidade de um indivíduo ou grupo, mas daquilo que é o mal praticado por ninguém, ou, como definiu Hanna Arendt ao observar um nazista julgado em Jerusalém, um mal banal, um mal praticado por aqueles que mecanicamente obedecem ordens. Pelo menos era essa a desculpa dos nazis quando foram julgados nos tribunais após a guerra.

Contudo, o que nos interessa aqui é perceber como o horror dos espaços (e o que acontece neles) nos invade e nos alerta sobre essa “banalidade do mal”, que somos capazes de observar sem ao menos questionar. Para dar um último spoiler (do filmaço que você certamente precisa ver ainda hoje ou antes de morrer), um recurso genial do filme é o som. Se os personagens não entram efetivamente no campo de concentração, o campo de concentração invade a mansão a todo momento. Algum desavisado pode achar que é um problema de sonoplastia e equalização. Mas não, o som da banalidade do mal que invade a mansão é o som da morte. Estampidos de tiros a queima-roupa, palavras de ordem dos soldados contra os prisioneiros, o som do apito do trem, ao longe, trazendo deportados. Sons, ruídos, barulhos e zumbidos que são ouvidos simultaneamente pela família Höss e por nós, do outro lado da tela e do tempo. Sons que são o pesadelo de uma das filhas do casal, que sonha levar doces para o entorno dos muros de Auschwitz e que perambula pela casa, sonâmbula, e que levada ao quarto pelo pai, que chega tarde do campo, ouve histórias de ninar para conseguir dormir. Como evitar o som lá de fora? Quem causa o mal que nos invade?

Dadas as devidas proporções, nossos espaços, nossas cidades são marcadas por esses sons e pesadelos, basta perambular pelo centro (e periferias) de São Paulo, noite e dia, para logo fazer uma sincera analogia. Basta, por exemplo, observar o tema do belíssimo desfile da escola de samba “Vai-Vai” para acertar em cheio: que grande Auschwitz é o Brasil! Nossas torres de vigia são as estátuas dos bandeirantes (ou a polícia) disse um amigo meu… e você? Está lá dentro vendo a fuligem de longe? Fingindo que esse barulho, que esse mal não é seu?

O nazista Rudolf Höss, comandante do campo de extermínio de Auschwitz e condenado por crimes de guerra, caminhando para sua forca. 1947. Stanisław Dąbrowiecki, fotógrafo de imprensa. Foto: domínio público.

Quanto a Rudolf Höss (isso o filme não te conta, mas o historiador sim), foi preso em 1945, fingindo que era um humilde jardineiro. Testemunhou no Tribunal Internacional de Nuremberg em abril de 1946. Falando com relativa tranquilidade dos milhões de mortos por câmaras de gás em Auschwitz. No mesmo ano, foi entregue às autoridades polonesas. O Supremo Tribunal Nacional da Polônia o condenou à morte. Foi enforcado em 16 de abril de 1947, perto de um dos crematórios do mesmo campo de concentração onde viu e fez ver — de perto e de longe — a vida de milhões de pessoas se esvaindo com o som e com a fumaça da banalidade do mal.

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