O salão Petit Trianon estava ainda escuro quando eles chegaram e se espalharam. Caboclos de todas as aldeias, de todos os cantos, de todas as línguas, cocares, arcos e flechas. Não invadiram, ocuparam, visto que a porta foi escancarada pelo dono da casa: Machado de Assis.
Olhar aflito atrás do pincenê, Machado estava ansioso. Nunca imaginou que este momento demoraria tanto. Ajeitou o paletó, passou a mão pelos cabelos já grisalhos e acostumados com os olhares dos que, ali mesmo dentro daquela instituição que presidia e ajudara a criar, reprovavam as raízes… apenas dos fios de capilares, obviamente. Afinal, quem poderia dizer que senhores distintos e letrados padecessem deste mal chamado preconceito? Mas Machado não queria pensar em nada disso agora. Ele precisava estar preparado para as visitas ilustres que estavam prestes a chegar e, de repente, veja! Lá estavam eles chegando.
O cacique Aimberê e sua amada Iguaçu vinham lentamente subindo os degraus que davam acesso à Academia Brasileira de Letras. Machado respeitosamente os cumprimentou. O cacique olhou ao redor.
“Aqui era tudo mar… Estamos em cima do mar.”
O cacique lembrava muito bem do tempo em que o mar da praia de Santa Luzia inundava o local onde se assenta hoje grande parte do Rio de Janeiro. A Academia Brasileira de Letras e as ruas no entorno, tudo era água. Iguaçu tremeu. Ela também lembrava. Não poderia nunca esquecer a bala que dilacerou seu coração na batalha que aniquilou grande parte dos Tomoios um pouco mais adiante, nos atuais bairros da Glória e do Flamengo. Estavam vívidos o odor nauseante do rio de sangue da batalha que dizimou milhares.
Portugueses e franceses estavam em guerra e não importa mais, pois quem desapareceu foi o seu povo. Franceses, portugueses… estes seguem vivos. E vivos nesta casa que paira sobre um mar do passado.
Aimberê queria garantias. Enviou seus parentes na frente para guardar cada canto daquele lugar. Quem poderia garantir que esta não seria mais uma armadilha para aprisionar seus descendentes, para aniquilar os frutos dos que conseguiram resistir às balas que quase apagam suas pegadas sobre a Terra?
“Sim!”, ele disse, “eu vim, mas todos os caboclos vieram comigo!”
Machado entendeu perfeitamente. Garantiu ao chefe que era bem ao contrário. Séculos haviam decorrido e agora não eram os seus que precisavam daquela casa. Era a casa que necessitava da presença dos seus.
E a casa começou a encher-se e a misturar-se, sem se dar conta, àquela inusitada assistência invisível. Uma convidada observou: “Na posse de Ailton Krenak só não veio quem já morreu!”. Aimberê sorriu divertido e Machado sussurrou-lhe ao ouvido: “Há controvérsias… há controvérsias!”
“Quem são aquelas, Machado?”
Iguaçu perguntou vendo um grupo que se aproximava. Machado sorriu melancólico diante de Maria Firmina dos Reis e Carolina Maria de Jesus, pois, embora ele desejasse que entrassem, elas não se moviam da calçada. Um homem também se aproximou. Machado levantou-se.
“Lima! Lima Barreto… por favor, entre!”
Lima pareceu recordar-se de algo doloroso e olhou detidamente para o edifício imponente.
“Somos mesmo bem-vindos?”.
Dando o braço às duas damas negras, virou-se de costas e se afastou deixando Machado olhando para seus convidados com amargura, impotência, desconcerto, desapontamento com um Brasil que muda mais lentamente do que o caminhar daquele verme que primeiro roeu suas entranhas.
O colorido dos cocares dominou a paisagem e o som dos maracás tomou o ar. Ailton Krenak proferiu seu discurso.
“Eu não sou mais do que um, mas eu posso invocar os 300. Nesse caso, os 305 povos que nos últimos 30 anos do nosso país passaram a ter a disposição de dizer “estou aqui”. Sou Guarani, Xavante, Caiapó, Ianomâmi, Terena…”
Aimberê abraçou Iguaçu e, acompanhados de Machado, saíram da sala deixando espalhados por ali todos os caboclos. Sentaram-se nas escadarias-mar e, do passado de onde vieram, fizeram um minuto de silêncio pelos que passaram no fio da espada e na pólvora disparada, mas também uma reverência pelos que aqui continuam na linha da escrita, da história contada e falada.
Machado, como bom preto velho, acendeu um cachimbo e ofereceu. Fumaram pensativos os três. Estava selada a paz possível e momentânea, pois a luta, esta sempre continua.
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