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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Operação reis magos

Um conto de Natal
21/12/2023 | 07h00

«… e abrindo os seus tesouros, entregaram-lhe suas ofertas: ouro, incenso e mirra. Sendo por divina advertência prevenidos em sonho a não voltarem à presença de Herodes… » (Mateus 2:11–12)

Ano 2023
Viagem ao ano 0 da era cristã. Diário do 6º Dia.

Devo dizer aos observadores futuros do tempo passado, que Mateus se equivocou. Não teve sonho. Foi o mouro Baltazar que, determinado, obrigou os outros a tomarem outro rumo para voltarem às suas casas depois da visita que fizeram ao bebê. Tudo por causa de uma conversa que tivemos, regada a bastante vinho numa taberna de Belém, assim que o velho Belchior, o jovem Gaspar e vários outros foram dormir.

Aliás, esta é uma observação necessária. Não sei quem disse que os três reis magos eram três. Aqueles caras não andavam sozinhos naquelas estradas perigosas. Voltemos, pois vi o Balta (o vinho aproxima as pessoas) pensativo e não sabia como me aproximar. Fiz um gesto reverente com a cabeça e oferecei uma caneca. Ele me olhou curioso, pois embora bem disfarçado, algo em mim revelava que era um forasteiro.

“Conterrâneo do Golfo Pérsico?”, perguntou intrigado. Como dizer a ele que eu vinha de uma terra que nem existia ainda para eles? Pensei e mandei “Etiópia” e ele pareceu se animar. Falou do rei Menelik 1º, o provável filho do rei Salomão com a rainha de Sabá e das dinastias que se seguiram naquele reino tão antigo.

Mandei servir mais uma caneca e Balta soltou a língua. Eu poderia ficar os mais de dois mil anos que nos separam ouvindo-o tão sábio, culto e interessado nos destinos da humanidade. Lá pela sexta caneca, baixei a voz e abri o jogo: “Rei Baltazar… entrei num projeto científico arriscado que ainda é segredo para a humanidade. Eu venho do futuro. Trago notícias”.

Ele era rei…e era mago, logo, não duvidou. Me puxando para fora, quis saber de tudo nos detalhes.

Fui contando e editando a história para não desesperar muito o velho mouro, afinal, mal sabia ele de tanta loucura que ia rolar nos próximos dois milênios. Baltazar riu quando eu disse que a Europa, a terra do Império Romano e para quem servia o tal Herodes a quem tinham visitado uma semana antes de acharem Jesus, Maria e José, se vendeu para o planeta inteiro como padrão a ser seguido. Ele até acreditou, pois estava acostumado com os delírios dos imperadores e governadores do seu tempo, mas não conseguiu segurar a gargalhada quando mostrei pinturas que fizeram ao longo dos séculos da família que acabara de visitar.

Balta gargalhou. “Mas… que ridículo! Que caras são essas?”, perguntou perplexo, mas ele se revoltou mesmo foi quando relacionei o tanto de coisas que eles já sabiam há milênios e que outras pessoas assinaram como inventoras. E nessa das “novas invenções”, disse a ele que estávamos quase acabando com o planeta por conta do “ouro negro”. Ele se espantou: “Mas o betume faz tudo isso?!” Tive que atualizar o vocabulário do bom mago: “Betume adotou o nome social de petróleo”.

Ele queria saber mais e mais e eu fui perdendo o pudor em revelar. “Baltazar, os pretos como nós também terão problemas com aquela galera”. Falei de colonização e tudo o que viria depois. Ele arregalou os olhos, estupefato: “mas que maluquice é essa? como assim inventaram que uma cor de pele nasceu para ser escravizada?”

Papo vai, papo vem e finalmente revelei o objetivo de ter embarcado nessa missão. Eu estava muito angustiado, precisava entender. Um rei mago talvez pudesse me dar soluções e, quem sabe, interferir no rumo das coisas.

“Nos mapas do mundo de onde venho, Belém está na Cisjordânia. Neste momento, estamos prestes a celebrar mais um aniversário do recém-nascido que vocês presentearam. Peregrinos de toda parte virão para cá nesta época ao longo de séculos, mas, no meu tempo presente Belém está desolada e faz um silêncio só quebrado pelo estrondo das bombas”.

Mostrei imagens da Palestina, de Israel… e vi lágrimas escorrerem na sua face escura. Baltazar olhou em volta atônito, fitou o firmamento coalhado de estrelas e respirou fundo, consternado. Eu não tinha mais muito tempo e resolvi me adiantar, contando o que o Herodes queria com a criança.

“Balta, o menino é bom e trouxe uma linda mensagem, mas…” Baltazar me corrigiu: “Será bem mais que isso. Eu vi nas minhas previsões. Ele tem potencial para fazer uma revolução!”. Concordei com ele e falei de alguns lindos ensinamentos disseminados por Jesus, mas Insisti.

“Não é o caso de voltar na família e tentar avisar para que tentem fazê-lo desistir disso de melhorar o mundo? Balta… Ele será barbaramente torturado e assassinado daqui a apenas 30 anos. Em nome dele, mas sem sua autorização, fiéis vão degolar, invadir, destruir… Herodes vai matar centenas de crianças de até dois anos e parece que vai reviver para matar muito mais por aqui no meu século”.

Baltazar me fitou penalizado, com um semblante de quem atravessa as eras e me abraçou apertado.

“Viajante do futuro, sou um ser humano como você. A única coisa que sei é que o barco do tempo que te trouxe é o mesmo que irá te conduzir a um futuro ainda mais longínquo. Uma vez lá quem sabe você faça a diferença, pois está vivo e vejo que segue alguns destes ensinamentos que você me conta agora trazidos por Jesus ou não viria de tão longe” .

Cocei a cabeça. Sábios conseguem nos confundir. “Que ensinamentos, Baltazar? Eu sou ateu!”

“Amar, agir e não se calar, viajante. Amar o próximo e se importar, viajante!”

Ele voltou correndo e fez todo mundo levantar acampamento antes do sol raiar. Pegaram a trilha oposta ao do palácio de Herodes e sumiram na poeira.

Voltei, observadores, ainda cheio de dúvidas, mas certo de que sim, o barco do tempo seguirá. “Tomara que a gente consiga não deixar de amar, Baltazar… tomara. Vou me esforçar”.

 

 

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