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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Os ‘twists carpados’ que vêm de longe

Saltos sobre obstáculos históricos
01/08/2024 | 06h24

Há uma frase que se tornou bordão nos movimentos de mulheres negras: “Nossos passos vêm de longe”. Ela foi cunhada pela ativista Jurema Werneck, hoje diretora da Anistia Internacional no Brasil, mas, segundo a própria Jurema, a ideia contida nela já estava disseminada entre os que brigavam por direitos humanos de mulheres e homens negros no país há muito tempo.

Nesta esteira vieram a busca pelo direito a uma vida saudável, à prática de atividades físicas orientadas e o desenvolvimento do talento esportivo como vias que podiam e deveriam ser acessadas por esta camada da população. Queiram eles e elas ou não, todos os atletas na delegação brasileira em Paris são fruto destas lutas antigas.

Há outra frase que está internalizada na vida da população pobre de forma mais ampla: “Você não é sapo, mas tem que dar seus pulos”. Assim, de pulo em pulo, se “virando nos 30, nos 20, nos 10…”, dando seu jeito para sobreviver num país que não democratiza o básico quanto mais o acesso a pistas, piscinas ou barras assimétricas de qualidade, uma legião de meninas e meninos foram ocupando e se inserindo dentro de modalidades para lá de elitizadas. Saltos que podem ser mortais para um gênio esportivo nascente.

Salto mortal 1: Racismo científico

Nossos passos vêm de longe, mas os preconceitos idem. O racismo científico, aquele que ganhou todo o gás no século 19 e que disfarçado de ciência tenta apontar supremacias raciais brancas, impediu muita gente de ascender nos esportes que queria. Ginástica, por exemplo, era tida como uma modalidade impossível para o sucesso de pessoas como a norte-americana Simone Biles ou Rebeca Andrade, pois “estudos” indicam que pessoas negras têm ossos pesados. Como se fosse impossível existirem pessoas negras completamente distintas umas das outras.

A sentença “era tida como modalidade impossível” só está com o verbo no passado porque Simone, Rebeca, Diane dos Santos e tantas outras vêm há alguns ciclos olímpicos calando as bocas-arautos do racismo científico, que atua pesadamente ainda hoje no meio esportivo.

Salto mortal 2: Condições de treino

Contrariamente a maioria dos países grandes medalhistas em Jogos Olímpicos, que fomentam as práticas desde os bancos escolares e universitários, o modelo esportivo brasileiro concentra o alto rendimento em clubes. Instituições que, por definição, são excludentes.

Só entra em determinado clube quem é sócio ou contratado por ele, logo, pistas, piscinas ou barras assimétricas de qualidade são olhadas de longe, como objetos de desejo, por entre grades que separam e deixam de fora talentos enormes. Tanto é verdade que muitos dos nossos grandes medalhistas foram feitos em projetos sociais, ou seja, é só dar a oportunidade que o talento floresce.

Salto mortal 3: Incentivo governamental e institucional

E por falar em oportunidade, um atleta com chances reais de pódio na maior competição do planeta, os Jogos Olímpicos, com raríssimas exceções, é o resultado de uma vida de treinamentos e investimentos. A interrupção destes recursos por um ciclo inteiro de quatro anos pode pôr a perder uma geração e, nesta corrida com obstáculos chamada esporte brasileiro, a gangorra dos humores governamentais é uma barreira gigante.

Ministério dos Esportes, leis de incentivo, bolsa atleta… tudo isso aconteceu e foi sendo aperfeiçoado ao longo dos governos Lula. O governo Bolsonaro, abruptamente, passou a régua e a faca nisto tudo. Há um ano e meio voltou o Ministério, mas… muita gente que está em Paris hoje está sentindo a dor na panturrilha de ter ficado à deriva por longuíssimos anos quando se trata de olimpismo.

No esporte de alto nível até o imponderável só acontece dentro de um grupo muito preparado para recebê-lo. Sendo assim, o país precisa pensar o que, afinal, quer com o esporte. A montanha-russa da vida esportiva nacional evidencia algo bem óbvio, ou seja, a falta de projeto de estado, não de governo. Quando não há projeto, não há rumo e quando não há direção, cada um segue para um lado e quem mais se perde é quem tem menos recurso próprio. Não é difícil ver quem fica de fora da festa da prática esportiva.

Pairando entre clubes, governo, patrocinadores e competições estão as nem sempre fáceis instituições esportivas como federações e confederações que, não raro, são instâncias de mais complicações ao invés de soluções. Vide a briga da valente de Jade Barbosa com a Confederação nos Jogos de 2012 e seus graves problemas de saúde.

Cada pódio nos Jogos Olímpicos de Paris é fruto de muitas pessoas que sobreviveram a todos os “mortais” que o Brasil impõe desnecessariamente aos seus cidadãos e cidadãs. São muitos os caminhos de cada medalha, mas os que pavimentaram a subida do time de ginástica artística até o bronze inédito passaram muito pelos mortais acima descritos.  São saltos grandes sobre obstáculos históricos, ‘duplos twists carpados’ que vêm de muito longe. Que sigam a partir de agora em tablados mais tranquilos e seguros.

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