Um tríptico fora de lugar
Desta vez, em lugar de palavras, principio com um vídeo:
Para que não haja dúvida alguma e para que não se produza o previsível falso milagre da multiplicação de mal-entendidos: a violência física deve ser condenada e na esfera do debate político nada pode justificá-la. Portanto, e sem ressalvas ou conjunções adversativas, não há motivo de celebração na infame ocorrência e ainda bem que Pablo Marçal não tenha sofrido ferimentos graves e pôde retomar imediatamente sua campanha.
De fato, a ação política do candidato não teve propriamente interrupção. Pouco depois do incidente, uma imagem surpreendente foi postada no seu Instagram.
A reunião de 3 imagens, cuja superposição gera uma narrativa comum, remete ao modelo consagrado do tríptico, forma muito usada na arte sacra, influente no período medieval, embora nunca tenha deixado de ser empregada em momentos históricos diversos. O tríptico é formado por três painéis, sendo um central e fixo, e os dois outros laterais e móveis. A narrativa das imagens laterais converge para o painel central, que assume um protagonismo temático correspondente à posição ocupada na composição. Vale dizer, não há autonomia entre as partes; pelo contrário, estão subordinadas à mensagem concentrada no painel central.
Essa breve, brevíssima descrição, digna de um José Dias no papel de improvisado crítico de arte, confere nova dimensão à postagem de Pablo Marçal.
Vejamos.
Em primeiro lugar, destaca-se a evidente inadequação do paralelo estabelecido. Comparada ao atentado recente contra Donald Trump e à facada sofrida por Jair Messias Bolsonaro em 2018, a cadeirada desferida por José Luiz Datena é propriamente um não evento. Pelo menos, não se pode equiparar à gravidade daqueles sucessos. Pouco importa: no multiverso de Pablo o que conta é a possibilidade de se apresentar como vítima, autêntico mártir que enfrentou o vale da sombra da morte. Não seria uma contradição com a imagem viril que desesperadamente deseja transmitir ao eleitorado?
Sim — resposta direta. No entanto, Marçal aposta na vitimização como uma forma de superar sua rejeição crescente junto à opinião pública paulistana. Isto é, se a blitzkrieg digital lhe assegurou o máximo de visibilidade num tempo mínimo, também aumentou o potencial de rechaço ocasionado pelas mesmas estratégias usadas na busca desenfreada por protagonismo eterno.
(Não se esqueça: o êxito no mercado digital pode ser a razão do fracasso no espaço público.)
Em segundo lugar, a megalomania delirante do multiverso Marçal vem constrangedoramente à cena na disposição das imagens na postagem. O centro da composição é o eixo da narrativa de um tríptico; portanto, o candidato Pablo afirma que os atentados contra Trump e Bolsonaro representam somente um apêndice de sua própria vitimização: os ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil são reduzidos à função de escada para o astro Marçal. A atividade vertiginosa da conta de Marçal no Instagram, após o incidente, emulou o formato exitoso do reality show, transferido para o universo da política.
A primeira série de imagens constrói o enredo: Marçal foi covardemente agredido e, logo depois da imagem da agressão, segue-se o tríptico que analisei. Na sequência, a “Nota oficial” da campanha, que sugere um quadro clínico preocupante, “com suspeita de fraturas na região torácica”. A imagem ao lado, contudo, apresenta uma contradição. Ora, a equipe médica teve uma avaliação diversa, pois Pablo ostenta uma modesta pulseira verde, indicadora de pouca urgência no atendimento. É sintomático que na segunda série de imagens em todos os momentos em que Marçal encontra-se no hospital, já não se veja a pulseira. A última imagem promete um hipotético “Dia da Vingança”.
(Da vitimização à vingança? Por que não? A vitimização também é um produto como outro qualquer. Por exemplo, a virilidade de ocasião.)
Pablo de Carvalho e Olavo Marçal
Chego a um ponto decisivo. Refiro-me à transferência das estratégias da economia da atenção para o universo da política. Estratégias essas que necessariamente implicam o emprego tático da violência simbólica e da agressividade verbal que sempre escalam em direção aos extremos. No mercado digital, a virulência também afasta adversários; contudo, paradoxalmente, por isso mesmo ela permite atrair um nicho fiel, que por si só garante êxito numa campanha de vendas, independentemente da possível rejeição de parte dos usuários. Como se sabe, para cada grupo de haters há pelo menos 1 comprador do “brand” Pablo. E haters são úteis a seu modo, uma vez que ajudam a difundir a marca Marçal, ampliando o alcance de seu nome.
Já no campo da política eleitoral, o raciocínio é antes o oposto. E por um motivo simples: não basta “vender” a própria candidatura para um número, digamos, “lucrativo” de pessoas, mas é imperioso conquistar a maioria do eleitorado. Aqui, a análise dos índices de rejeição é muitas vezes o fiel da balança, especialmente em eleições altamente polarizadas. O mecanismo do hater como um propagador involuntário da marca Marçal vira um obstáculo que bem pode tornar-se intransponível.
Há mais: a dinâmica da economia da atenção depende de uma escalada virtualmente infinita de violência simbólica; afinal, sua lógica exige que limites sejam continuamente rompidos. Uma vez realizada uma transgressão, sua eventual repetição naturaliza a ruptura, logo, impõe-se nova transgressão, obrigatoriamente mais radical do que a anterior. A trajetória aparentemente errática de Pablo Marçal responde fielmente a essa demanda. O paradoxo é assim inevitável: o aumento exponencial de sua onipresença nas redes sociais, especialmente no Instagram, tanto reforça a suspeita de abuso de poder econômico e de uso indevido dos meios de comunicação, quanto aumenta o potencial de rejeição do candidato.
(Malandro é malandro e mané é mané. Porém, diz aí, diz pra mim, malandro demais também é mané? Podes crer que é.)
Na reta final da campanha o multiverso do candidato do PRTB acionou um novo personagem. Sai de cena a psicologia do batedor de carteira, que se impõe no grito, e entra em cartaz um híbrido — Pablo de Carvalho. Ou Olavo Marçal.
Explico.
Na superfície, Pablo converteu-se em Olavo na deturpação paródica do nome próprio de Guilherme Boulos, Tabata Amaral, Ricardo Nunes e José Luiz Datena; naturalmente, não reproduzo os “apelidos”, mas anoto a inspiração do gesto.
Na estrutura profunda, Marçal de Carvalho tem assumido posições contraditórias; em alguns casos, afirma A e no instante seguinte promete B. Por fim, diz as duas coisas ao mesmo tempo. Ao ser questionado pela incoerência, esbraveja e decreta a incúria do jornalista.
Retornemos ao episódio da cadeirada. Pablo Marçal tornou-se conhecido pelas autodescrições hiperbólicas: em pleno oceano, nocauteou um tubarão; deu um mata-leão no próprio rei da selva; iron man do Cerrado; ciclista imparável; homem ímpar. Pois bem: após a agressão, foi visto, aparentemente desacordado, numa ambulância, que seguiu em alta velocidade para o hospital. O macho alfa de Goiás respirava por meio de um balão de oxigênio e, para rematar a tela, uma máscara de dor contraía seu rosto harmonizado. Durante a madrugada, postagens inúmeras retrataram o guerreiro do “mindset” indestrutível, surpreendentemente abatido por uma poderosíssima cadeira, quase uma arma nuclear. No entanto, ao receber alta médica, na manhã do dia seguinte, provavelmente preocupado pela repercussão negativa de sua inesperada “debilidade”, vimos ressurgir o homem de ferro, exterminador de nomes próprios, falando em tom ameaçador e, ao mesmo tempo, apresentando-se como “oferta”, na imagem do autossacrifício que perigosamente alça Marçal a um patamar a que ninguém deveria aspirar.
(No programa Flow, em entrevista a um atônito Igor, Pablo confessou, sem senso algum de ridículo, que já tentou ressuscitar duas pessoas…)
Pablo sabe bem o que está fazendo. Aliás, ele sempre agiu assim no mercado digital. Aqui, Marçal revelou-se um leitor atento de Olavo de Carvalho. Em O Jardim das Aflições, em páginas inquietantes, Olavo refletiu sobre o tema que ajuda a entender o móvel profundo das estratégias de Pablo Marçal, “Dos cães de Pavlov ao lava-rápido cerebral”. Pablo de Carvalho é mestre em produzir “estimulações contraditórias”, a fim de desestabilizar o interlocutor, com a finalidade de manipulá-lo.
(Mais ou menos como enviar mensagem de WhatsApp na véspera de acusar o outro em rede nacional de um crime hediondo? Pegou o código?)
Vamos entender como se dá o fenômeno?
Logo ficou claro para todo o mundo que a lavagem cerebral era uma aplicação das teorias do neurofisiologista russo Ivan Pavlov. (…)
Mas a doutrinação teria resultados escassos se não fosse uma segunda descoberta de Pavlov: a dos efeitos da estimulação incoerente. (…)
Gurdjieff ora esmagava os coitados sob pilhas de exigências constrangedoras, ora os induzia a descargas aliviantes que lhes davam a impressão de plenitude e liberdade, só para depois serem repentinamente jogados de novo em provações humilhantes. Repetida a operação algumas vezes, os discípulos se persuadiam de que Gurdjieff era mesmo um extraterrestre.
O segredo era o planejamento cuidadoso do fluxo de informações, calculado para paralisar a consciência por meio da estimulação contraditória. (…)
Pode-se mudar a personalidade e as convicções de um homem levando-o ao esgotamento resultante da estimulação contraditória (Pavlov).[1]
Manipulador vulgar, açodado e incapaz de reagir quando seus artifícios falham, falta a Pablo Olavo a sutileza indispensável para que a manipulação não pareça ostensiva. Nesse caso, o resultado do exercício das estimulações contraditórias bem pode ser o repúdio e não a submissão. Marçal de Carvalho precisa urgentemente de uma rigorosa autocrítica, mas a tarefa é pouco provável num homem que é muito mais sábio do que Salomão.
(Pois é: o espelho como muro.)
A mais completa tradução das “provações humilhantes” reside na abordagem agressiva do coach com seus clientes: “Como? Pergunta começa com ‘Como?’ Ou nem escuto”. Cortes com essas cenas deprimentes viralizaram nos últimos anos. Ao que parece, Pablo, o mito do mercado digital, talvez tenha decretado o fracasso do Marçal, dublê de político messiânico. O eleitor nem sempre começa perguntas com um subserviente “Como?”. Exposto à megalomania mitômana do personagem, o eleitorado pode superar a perplexidade inicial e retornar à pergunta básica: “Por quê?”.
[1] Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições. De Epicuro à ressurreição de César: ensaio sobre o Materialismo e a Religião Civil. 3ª edição. Campinas: Vide Editorial, 2015, p. 106-111, grifos do autor.
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