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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

Para que serve o populismo penal?

O encarceramento indiscriminado de negros e pobres é uma das principais chagas e perversidades praticadas contra os mais frágeis
17/04/2024 | 10h53

Vamos primeiro ao fato:

A OAB pediu a manutenção do veto do presidente Lula ao PL que corta as assim chamadas “saidinhas” dos presos. A instituição divulgou nota técnica defendendo a inconstitucionalidade da norma que fere princípios resguardados na Constituição, como o direito à dignidade da pessoa humana, a proteção da família, bem como evitar retrocessos dos direitos fundamentais. Significa também a abolição na prática dos direitos do regime semiaberto, vista como um momento crucial para a reintegração do preso.

Esse retrocesso do Direito Penal serve como uma luva para que a direita e a extrema direita ataquem o pobre e o preto. O populismo penal, embutido nesse comportamento do Congresso, é dirigido unicamente a fomentar o ódio dessas pessoas aos pretos e pobres que são a imensa maioria dos presídios. Trata-se aqui, na verdade, como acontece quase sempre, aliás, expressão velada de racismo racial e racismo de classe.

O encarceramento indiscriminado de negros e pobres é uma das principais chagas e perversidades praticadas contra os mais frágeis. A maioria não conhece seus direitos, nem tem acesso a advogados e mofam nas prisões. Serve apenas à eternização de uma classe de humilhados e odiados que é vítima não da indiferença apenas, mas do ódio ativo e do desprezo geral.

Este ponto é daqueles que mostram perfeitamente nossa herança escravocrata, deixando pessoas vulneráveis, da população mais pobre excluída e humilhada cotidianamente, que não tiveram oportunidade na vida por conta de uma sociedade perversa e insensível, a mercê do ódio das classes acima dela.

Sendo este sentimento de ódio ao mais frágil a grande singularidade da sociedade brasileira, o que temos aqui é a mais perfeita continuidade de um sistema que visava reduzir seres humanos ao nível mais baixo da humanidade. Muitos acham que a continuidade da escravidão é apenas retórica. O que não é verdade. Basta que observemos que não são os aspectos mais visíveis, como o pelourinho, as algemas e os chicotes, os de maior importância.

Os instrumentos que se usa para oprimir e humilhar podem assumir várias formas, o que importa é sua essência que é o ódio e desprezo ao mais frágil, a incapacidade de empatia. E o populismo penal, apoiado pela maioria da população, especialmente os pobres remediados logo acima dos muito pobres, serve para três fins:

  1. Serve, literalmente, para “construir o criminoso”, que é o que atenta contra a propriedade, considerada mais importante que a própria vida entre nós, transformando a vítima do abandono social em causa para todos os males da sociedade. E no Brasil se construiu o preto pobre como criminoso. Com isso justifica-se a ordem dominante e suas opressões.
  2. E com isso tornar literalmente invisíveis os crimes da elite, como o tombo de 40 bilhões de Lehmann, percebido não como crime — aliás muito maior pelos seus efeitos do que milhões de crimes pequenos — mas sim esperteza de empresário brilhante.
  3. Finalmente, produzir, especialmente no pobre remediado, seja branco ou negro — os que ganham entre 2 e 5 salários mínimos — um sentimento positivo que mitigue sua sensação de humilhação e de desprezo em relação às classes do privilégio, as custas de alguém ainda mais frágil. É assim que funciona o sistema de castas hindu: até as classes intermediarias podem se sentir superiores a alguém, mitigando a sensação de desvalor objetivo. Este é, aliás, o público cativo da extrema direita em todo lugar.

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