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Por Pedro Chê*

Em certa ocasião, o ex-jogador de futebol Tadeu Ricci, provavelmente inspirado por Karl Marx, disse que o “futebol é o ópio do povo”. Essa célebre frase foi dita durante a ditadura cívico-militar, período em que o futebol carregava consigo um conjunto de sentimentos importantes para o povo brasileiro.

Iniciar esse texto com essa breve história pode parecer um apego à coincidência (já que envolve futebol e ópio, dois temas centrais aqui), ou até uma aleatoriedade. No entanto, há um sutil fio de seda que sai dela, e que pode ser usado para ligar diversos momentos da leitura.

Faço aqui um pequeno resgate acerca das Guerras do Ópio, para deixar o texto bem amarrado. As duas guerras ocorreram em meados do século 19 no território chinês. A primeira por iniciativa do Império Britânico. Na segunda, outros atores se uniram à causa britânica, incluindo França e EUA.

Nessa disputa, a atual Inglaterra — e, mais tarde, outras potências ocidentais –, buscou, por meio da guerra, forçar a China a abrir seus portos aos produtos ocidentais, em confronto com as estratégias e desígnios da burocracia chinesa.

O governo chinês, até então, se recusava a importar produtos ocidentais, se dispondo apenas a exportar, e exigia que as transações fossem feitas em prata. Essa recusa acarretava um déficit na balança comercial em detrimento do Império Britânico, o que era ferozmente evitado pelas economias ocidentais desde o início do mercantilismo.

Após o fracasso das tentativas diplomáticas para abrir a China às importações, o Império Britânico recorreu a um estratagema: por meio do contrabando, insuflou de ópio a economia e a sociedade chinesa. Isso gerou como resultado imediato, um ‘equilíbrio’ na balança comercial. Vale registrar uma curiosidade aqui: a chamada “guerra às drogas”, promovida mais tarde pelos EUA, teve como um de seus principais objetivos conter a evasão dos dólares que financiavam o tráfico de cocaína made in Colômbia.

Um segundo resultado apontável foi o uso da reação chinesa ao contrabando como pretexto para deflagrar as duas guerras, que acabaram por submeter a China, de forma política e econômica, aos interesses externos. Esse período ficou conhecido na China como o “Século de Humilhação”.

O tema é fascinante, mas nossa discussão deve mudar de direção agora. Está na hora de trazermos as apostas e os jogos digitais de azar para participarem do debate. Embora não tenham sido ‘contrabandeados’ por agentes estrangeiros (tal qual fizeram as Companhias das Índias Orientais), estes jogos e casas de aposta foram autorizadas a atuar em nosso território por meio de decretos ‘piratas’, sabotadores e antinacionais, facilitando a pilhagem que testemunhamos atualmente.

Assim como o ópio, as apostas e jogos de azar vêm corroendo as riquezas nacionais, mas com um agravante: os recursos estão sendo extraídos principalmente dentro de certas camadas vulnerabilizadas da população, em especial homens de baixa renda, jovens, de menor nível de escolaridade. Somas em dinheiro que eram destinadas ao consumo mais básico, para a utilização de serviços que antes faziam girar a economia local, vem sendo desviadas para o lucro de empresas transnacionais ou ainda para grupos associados ao crime organizado no país.

Outro ponto de semelhança está no impacto social. O Império Britânico, ao perseguir seus interesses, sabia que seria estratégico criar problemas internos para o governo chinês, sendo bem-vindo aos seus desígnios tornar entre 10% a 25% da população chinesa masculina dependente ou usuários regulares do ópio. No caso das apostas, esse patamar parecer que logo será alcançado: temos cerca de 15% da população adulta já envolvida com tais práticas.

E este impacto não é só permitido no que diz respeito à prática, mas também está embute um apoio político subsequente por parte dos próprios usuários, que tendem a olhar negativamente tentativas de regulamentação, tributação ou restrição de tais empresas, pois entendem estas ações estatais como barreiras para o ganho de dinheiro.  É o mesmo fenômeno inclusive percebido entre aqueles que alugam sua força de trabalho para a Uber, o Ifood etc., empresas que não deixam qualquer contrapartida em meio a retirada de recursos nacionais.

Como não haveria de ser diferente, há outra congruência: a permeabilidade de suas relações com o crime. Inclusive essas relações estão sendo objeto de várias investigações, nas quais casas de apostas e de jogos de azar estão servindo como fonte de renda para organizações criminosas ou como ferramenta para lavagem de dinheiro. Importante mencionar as famílias que estão sendo prejudicadas e as vidas perdidas — sim, é comum que devedores de jogos atentem contra a própria vida, devido ao sentimento acachapante de ruína e de culpa.

O que está em jogo vai além de prejuízos financeiros, negligência estatal ou o sofrimento de pessoas e famílias, embora estes fatores já sejam gravosos o bastante para merecerem nossa total atenção. Não podemos fechar os olhos para a possibilidade de se formarem associações perniciosas, como ocorreu no exemplo chinês, entre interesses internacionais escusos e o crime organizado nacional, o que pode agravar ainda mais a realidade brasileira. As bets e os jogos de azar, tanto quanto as redes sociais, possuem potencial para isso.

Temos que agir.

 

*Policial civil e professor de História

 

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