Conversei com o padre Leonardo Lucian Dall’Osto numa live pelo Instituto Mosaico. Gostei tanto que resolvi destacar alguns fragmentos aqui na coluna do ICL Notícias. Padre Leonardo Lucian Dall’Osto atua como sacerdote na Paróquia Santa Rita de Cássia, em Caxias do Sul (RS). Ele é graduado em Filosofia pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); mestre em Teologia pela PUCRS e doutorando em Teologia Dogmática pela Università Gregoriana de Roma.
Valdemar: Sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, suas falas chamaram a minha atenção pela lucidez. Serenidade mesmo numa tragédia de tamanha dimensão e tendo que lidar com discursos religiosos que nos enchem de vergonha pelo fato de se autoproclamarem cristãos.
Leonardo: Estou numa região não tão atingida pelas enchentes porque nós estamos bem no alto da serra — Caxias do Sul. Mas nós sofremos especialmente num dos nossos bairros que era na Encosta da Serra. Houve sete mortes por conta de desabamentos.
Fala um pouco sobre como que você recebeu esses conteúdos que circularam não só pelas redes sociais, mas também nos nossos púlpitos. Quando digo os nossos púlpitos, entre evangélicos e católicos.
Fiquei assustado porque percebi que há forte teor de preconceito religioso católico. Nós, católicos, imaginamos que o fundamentalismo está do lado de lá, sempre vindo das Igrejas Evangélicas. Nós temos dificuldade de reconhecê-lo dentro da Igreja Católica e hoje ficou muito evidente como o fundamentalismo católico está escancarado. Talvez por conta do acesso que temos às redes sociais.
Enfim, o primeiro impacto que eu tive foi um susto. Como é que nós temos padres e pastores sustentando um discurso religioso caduco. Caduco porque nós vamos encontrá-lo no passado. Visão religiosa judaico-cristã que além da caducidade carrega uma perversidade.
Nós estamos fazendo renascer exatamente a perversidade do discurso religioso. Fosse apenas caduco, ou seja, por ignorância, já seria preocupante, mas está em jogo também a perversidade. Essas duas coisas me vieram em mente quando eu escutei os discursos, primeiro o susto pelo fato de que o fundamentalismo está muito presente, mas depois eu fui percebendo a perversidade que está por trás da recuperação de um discurso caduco.
Quer dizer, não é por nada que se recupera isso, há uma perversidade religiosa muito profunda envolvida. Costumo dizer sempre que a perversão pior, eu não, isso é de Pascal, é a perversão religiosa porque nós fazemos o mal em nome de um absoluto.
Trata-se do raciocínio simplório de colocar Deus como autor da tragédia para se vingar movido pelo ciúme. Dizem os arautos do preconceito religioso que os gaúchos plantaram macumba e colheram tempestade vindo de um Deus zangado. Por pura birra, Deus moveu terra, mar e vento para ajustar as contas com um povo que cultua os demônios. Os tais caracterizam o Rio Grande do Sul como o Estado da Federação com a maior quantidade de terreiros de Umbanda e Candomblé, além de liderar proporcionalmente o número dos que se declaram ateus.
Assusta pensar que no século 21 estamos dando explicações míticas para questões científicas. Usar uma explicação dessas hoje no contexto europeu, provavelmente, eles vão desconsiderá-la imediatamente. Porém, no Brasil, esse caldo ainda tem espaço. Explicar a chuva a partir de uma explicação mítica é uma explicação ridícula.
Mas o pior, ela se torna uma oportunidade perversa para alguns pregadores martelarem seus preconceitos e racismos. Dizem que não é bom porque vem da África e que não é de Deus porque não é cristão. Nessa versão, o que vem dos negros é macumba e bruxaria. Agora falo da minha realidade católica, parece às vezes que nós estamos dando passos para trás.
Abismados estamos com o modo terrivelmente cristão alastrado. Fica parecendo que se nos esforçarmos, vamos alcançar a Modernidade. Você fala com toda razão em retrocessos que nos leva de volta para a Idade Média. Mas, fica parecendo, pelo modo tacanho de pensar e viver a Igreja, que nunca tocamos de fato o espírito da Modernidade. Para uns, parece cômodo alimentar a ignorância dos crentes e jamais emancipá-los. Leonardo, diante disso, como ser teólogo e sacerdote num quadro sombrio como esse? Formulemos uma caricatura: Deus não causa o sofrimento, coitado dos que sofrem, mas, também né, quem manda se entregar à feitiçaria e à bruxaria? Meu irmão, eu fico confuso, não dou conta de tamanha hermenêutica que refoga na mesma panela ignorância com perversidade.
O Velho Testamento é cruzado pela teologia de retribuição segundo a qual Deus é autor do bem e do mal. Quem vai romper um pouco com essa ideia é o livro de Jó. No Novo Testamento, Jesus desconstrói essa teologia da retribuição.
Nosso povo, especialmente os nossos pregadores, precisam de um senso histórico. Não basta termos a dogmática e a história da igreja, é necessário a história do desenvolvimento da doutrina. Tivesse lido um pouco sobre as ideias, por exemplo, medievais e modernas sobre bruxaria, não diria essas bobagens que estão por aí.
Teimam em encontrar uma causa sobrenatural para os eventos naturais. Por que a causa tem que ser sobrenatural? Por que que não pode ser o problema climático como tal? Qual é o interesse que está por trás disso? Hermenêutica que privilegia um sistema privilegia uma lógica Econômica. Ora, se a causa é sobrenatural, eu não preciso mudar nada no sistema econômico.
Como mensurar o tamanho do sofrimento e de todas as perdas do povo gaúcho nesta tragédia sem precedentes? Como num momento tão sofrido alguém com capa religiosa é capaz de colocar Deus na lama desse jeito? Não se trata de apresentar Deus como aquele que assume as nossas dores, mas como o autor da tragédia que implica em sofrimento. É muito grave porque há um desvio absoluto do que se pensa de Deus e há uma crueldade para quem está sofrendo. Essa visão que se tem sobre os povos dos terreiros, a perversidade de demonizar as religiões de matriz africana, é de uma crueldade sem tamanho.
Há uns 20 anos eu li um texto que talvez você tenha lido também. Livro famoso do Edir Macedo, “Orixás, caboclos e guias: Deuses ou demônios?” Aquele texto me impactou muito porque o autor fazia uma correlação entre os demônios e as entidades manifestadas nas religiões afro. Imagino que alguém já tenha ido em algumas igrejas e têm aqueles rituais de exorcismo que acontecem.
Os nomes das entidades são os nomes dados pelas religiões afro. É um tal de expulsar uma Pomba Gira, expulsar um Exu, demonizar o outro, e assim afirmar uma suposta autoridade espiritual. Quando os africanos escravizados vieram para o Brasil, tiveram que se submeter e esconder a religião deles abaixo da religião católica. Não à toa que nós temos esse sincretismo tão forte entre católicos e africanos porque eles foram obrigados a submeter as suas entidades as nossas.
Demonização que tem espaço entre evangélicos e católicos. Penso que o calcanhar de Aquiles dessa coisa toda seja o fato de que quem cultua Orixás não sejam brancos, são negros. Penso que na verdade é o racismo que está por trás disso tudo. Demônio existe para nós cristãos. Ideia do diabo e dos demônios a partir de uma teologia que é cristã.
Nessas religiões de matriz africana, esse tipo de entidade, conforme concebido pelos cristãos, não existe. Orixás é um culto de negros e na cabeça de muitos cristãos, as culturas dos negros refletem uma subespécie. Não é apenas uma questão de intolerância religiosa, mas é fundamentalmente uma questão racial, racismo. Para fazer esse movimento, temos que tirar do centro a figura de Jesus como principal critério hermenêutico.
É muito fácil perceber o demônio na religião alheia, e, talvez, bastante difícil para alguns, no dito espaço sagrado cristão, discernir expressões demoníacas, ainda que bem familiares.
Tratando do contexto cristão, não podemos imaginar que todo religioso seja evangélico no sentido de que aderiu ao evangelho. A pessoa pode ser profundamente religiosa e profundamente antievangélica. É contraditório com o evangelho a intolerância religiosa. Há quem justifique o mal e a sua perversão com o vulto religioso.
Na versão da perversidade cristã “sou fundamentalista, mas estou na moda”. Religiosidade cheia de roupagens vistosas, mas muito distante do Cristo.
Todas essas formas fundamentalistas que nós estamos vendo serão as culpadas no futuro de uma sociedade menos religiosa.
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