Neste episódio do Pix o que verdadeiramente me custa a aceitar são as razões que levaram o Estado brasileiro a querer saber mais sobre a vida financeira dos seus cidadãos, obrigando a comunicar à Receita as transferências acima de R$ 5 mil por mês. Segundo leio nos jornais, essa informação destinar-se-ia a ser comparada com os rendimentos padrão por forma a identificar anomalias que, devidamente confirmadas por algoritmos informáticos poderosos, justificariam controles, vigilâncias e perseguições a cidadãos que, desta forma, se tornariam suspeitos. Eis o espírito do tempo: tudo serve de justificação para reduzir a autonomia individual e tudo serve de álibi para legitimar a intromissão estatal na vida das pessoas.
Já vai sendo tempo de alguém lembrar que entre a liberdade individual e a autoridade estatal é preciso encontrar um justo equilíbrio — o que não me parece ser o caso. O problema do Estado moderno não é saber pouco; o problema do Estado moderno é saber demais sobre os seus cidadãos. Sinceramente, julgo que a polêmica do Pix não passou de um erro político que o governo, inteligentemente, não procurou corrigir — acabou com ele, revogando a medida. Do mal, o menos.
Por outro lado, julgo importante contrariar a ideia de que tudo o que corre mal ao Governo brasileiro tem a ver com a comunicação. Não me parece que seja assim. O incidente Pix não é um erro de comunicação, mas um erro de governação. Nenhum gênio comunicacional seria capaz de transformar uma medida desproporcionada de vigilância da vida financeira dos cidadãos numa medida com sentido e com justificação social (a não ser que consideremos que a sonegação fiscal tudo justifica, o que me parece difícil de compatibilizar com as garantias constitucionais). No final, acho que todos perceberam uma coisa simples: a medida exporia, de forma absolutamente desproporcional, a vida financeira dos indivíduos e aumentaria a necessidade de dar explicações às autoridades. Mais uma vez — nada a ver com comunicação, tudo a ver com governação.
Sim, é certo que a extrema direita viu no incidente uma oportunidade de castigar o governo e que o fez como habitualmente — sem qualquer escrúpulo pela verdade dos fatos. É certo que a ideia do imposto sobre o Pix é falsa e que toda a conversa sobre essa ameaça é simplesmente enganadora. Todavia, a campanha contra o governo foi tão eficaz que nos ficou, mais uma vez, a impressão de que o programa da extrema direita se resume ao uso das redes sociais. Os seus líderes são propagandistas e parecem fazer desse ofício a sua realização pessoal. Podemos dizer, sem correr o risco de ofender ninguém, que essa é a sua essência, essa é a sua linha política, essa é a substância da coisa, por assim dizer. Não é por acaso que os novos oligarcas — Musk, Bezos, Zuckerberg — sejam, todos eles, donos de empresas globais de comunicação. A identidade política da extrema-direita é a propaganda.
Mas o pior de tudo é a impressão de que há, na esquerda, quem queira imitá-los. O episódio parece ter relançado a ideia, recorrente nalguns círculos, de que a principal preocupação do governo, mais do que governar bem, deve ser a competição com a extrema-direita na propaganda. Copiar o método, copiar as técnicas, copiar as ferramentas. Tudo isto me parece uma perigosa ilusão. Para quem está no governo, a prioridade deve ser acertar na política, não na propaganda. E para quem tem bons números na economia, essa aposta faz ainda menos sentido. O Brasil está melhor que há dois anos — o crescimento econômico é melhor do que o esperado, o emprego apresenta bons resultados e o rendimento domiciliar atinge resultados históricos. Esta realidade acabará por se impor. Sem querer desmerecer a comunicação política, devemos lembrar-nos que ela é apenas um meio, não um fim político em si. A luta pelo poder politico não é uma luta de propaganda, mas uma luta por boa governação.
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