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João Cezar de Castro Rocha

Professor Titular de Literatura Comparada (UERJ) e Cientista do Nosso Estado (FAPERJ). Autor de 14 livros; seu trabalho já foi traduzido para o espanhol, mandarim, italiano, francês, alemão e inglês.

Plano de Poder: Teologia do Domínio e Igreja Universal – II

Quais são as fontes que alimentam o projeto nada modesto de tomar, passo a passo, o Palácio do Planalto?
12/07/2024 | 08h16

Fontes e segredos

A explicitude do propósito político que anima a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) estampa a capa do livro do Bispo Edir Macedo: “Plano de Poder”.

Na coluna de hoje, tentarei responder à pergunta-chave: quais são as fontes que alimentam o projeto nada modesto de tomar, passo a passo, o Palácio do Planalto.

Claro, em primeiro lugar, a Bíblia. Isto é, a leitura deliberadamente interessada, fraudulenta mesmo, das Escrituras. Contudo, não exatamente do corpus bíblico como um todo, porém de uma seleção estratégica. No caso, a dupla Macedo e Oliveira privilegia o texto veterotestamentário. Aqui e ali, o Novo Testamento é lembrado, mas toda vez que se trata da ambição política da IURD, o Antigo Testamento fornece o rumo.

Como sempre: hora de consultar “Plano de Poder” — a passagem é longa, mas vale cada palavra pelo efeito iluminador:

“O projeto de nação pretendido e elaborado por Deus e também que seja elaborado, a partir dessas conversações, um plano nacional de governo. Durante os 40 anos em que andaram pelo deserto, os hebreus receberam regras e leis que reformularam seus conceitos, e neles foram também incluídas propostas para gerir a terra prometida e levá-la ao crescimento. Todos os hebreus tiveram que assimilar a consciência social, o espírito de corpo, para que então pudessem promover o bem comum e receber permissão para tomar possa da terra prometida. Como fica provado através do texto bíblico, a promessa existe e o desejo divino para que isso se cumpra é constante, tanto que pudemos observar sua persistência nessa meta, primeiro com Adão e Eva, depois com Noé, com José, com Moisés, Daniel e tantos outros. E agora com aproximadamente 40 milhões de evangélicos.” [1]

Vamos lá: há tanto a esmiuçar nessa citação que nem sei por onde começar.

Pelo começo — por que não? Viva Haroldo de Campos!

(e começo aqui e meço aqui este começo e recomeço…)

Aprendemos com a hermenêutica ousada dos autores que Deus planejou um “projeto de nação”. Para tanto, forneceu aos hebreus “regras e leis”, que naturalmente não poderiam senão comandar obediência estrita por parte do povo. A defesa de uma ordem política teonomista aí encontra seu fundamento, com a vantagem nada desprezível de driblar a peregrinação de 40 anos pelo deserto.

Mas não é tudo!

Afinal, chegar à terra prometida é somente o primeiro momento de uma era. Como assegurar a prosperidade na nova morada? Seus problemas acabaram! Na interpretação de nossa valente dupla, Deus, além de Criador, é sobretudo Gestor; aliás, muito preocupado com as miudezas do varejo, pois, ao que parece, ao descer do Monte Sinai, Moisés trouxe mais que a Tábua das Leis: “foram também incluídas propostas para gerir a terra prometida e levá-la ao crescimento”. Sem receio do ridículo, os autores subvertem completamente o sentido da perícope, afirmando sem constrangimento: “Como fica provado através do texto bíblico”.

(Provado?)

Na sequência, o fecho de ouro. Administrador obstinado com o aperfeiçoamento de sua Criação, na visão teologicamente blasfema dos autores, Deus insistiu em propagar sua missão por meio de inúmeros mensageiros, “tanto que pudemos observar sua (sic) persistência nessa meta”. A lista ilustrativa inclui somente nomes do Antigo Testamento: Adão, Eva, Noé, José, Moisés e Daniel. O Novo Testamento não fornece um único modelo inspirador? Jesus Cristo?[2]

(Num Plano de Poder Político, Jesus não poderia mesmo ser arrolado.)

Eis que se retira o coelho da cartola: logo após elencar “os grandes personagens bíblicos”, [3] de Adão a Daniel, o texto associa a persistência divina “nessa meta” ao Brasil de hoje: “E agora com aproximadamente 40 milhões de evangélicos”. Tiremos o chapéu para a habilidade retórica: a dupla Macedo e Oliveira realiza um salto mortal sem rede, pulando do Antigo Testamento ao presente brasileiro — e isso sem nenhuma parada, por mais breve que seja, no território do Novo Testamento.

Templo de Salomão

Seis anos depois do lançamento de Plano de Poder a deriva teológica da IURD em direção ao Antigo Testamento assumiu proporções literalmente monumentais. No dia 31 de julho de 2014, inaugurou-se o Templo de Salomão em São Paulo, com a presença da presidente Dilma Rousseff, do vice-presidente Michel Temer, além de ministros do STF, governadores, prefeitos e uma legião de deputados e vereadores. O universo político em peso prestigiou o evento.

 

(Como imaginar Jesus Cristo nessa comitiva?)

No discurso de inauguração, Edir Macedo sentiu-se na obrigação de mostrar-se um leitor assíduo da Bíblia e não se fez de rogado. Decidiu revelar a passagem mais importante das Escrituras em suas horas de tribulação. Talvez alguma das parábolas de Jesus? Suas orientações aos discípulos? O Sermão da Montanha? Algum trecho dos Atos dos Apóstolos? Edir Macedo foi cirúrgico:

“Apenas uma palavra que eu quero que você guarde no coração. A palavra que nós encontramos no profeta Jeremias, que não sai de dentro de mim, que me dá força na hora das dificuldades.” [4]

Não surpreende, portanto, o figurino escolhido pelo Bispo Macedo para a ocasião. Como se fôssemos transportados para uma telenovela da Rede Record, encontramos um homem com barbas proféticas propriamente cenográficas, com o esmero de deixar as costeletas sem corte. A indumentária apropriou-se do manto listrado das orações matinais. Por fim, até o quipá foi usado sem constrangimento algum.

 

 

A menção ao profeta Jeremias é parte desse contexto judaizante de adesão crescente ao texto veterotestamentário. Ainda assim a alusão intriga, como se uma inesperada má consciência atormentasse fantasmaticamente o CEO da IURD. Ora, não é verdade que a atitude de Jeremias anunciou o gesto de Jesus Cristo contra os vendilhões do templo?

Explico.

O livro de Jeremias apresenta uma reflexão contundente que diferencia a formalidade de um culto automaticamente repetido e a sinceridade da fé que busca conciliar palavras e ações. Trata-se de uma das passagens mais discutidas do Antigo Testamento:

“Palavras que o Senhor dirigiu a Jeremias: Coloca-te à porta do templo e aí proclamai: Escutai, judaítas, a palavra do Senhor, vós que entrais por estas portas para adorar o Senhor; assim diz o Senhor dos exércitos, Deus de Israel:

Emendai vossa conduta e vossas ações,

e habitarei convosco neste lugar;

não vos iludais

com razões falsas, repetindo:

‘o templo do Senhor, o templo do Senhor,

o templo do Senhor’.

(,,,)

Credes que seja uma cova de bandidos

este templo que leva o meu nome?” [5]

Pouco importa a aparência da contrição ou a coreografia da devoção se não “emendais vossas condutas”. Figurino rabínico e cenografia anacrônica nada valem se a conduta obedece a “razões falsas, que não servem”. Evocar Jeremias na inauguração do Templo de Salomão da IURD é quase um ato falho. Sintoma agravado porque nos 4 Evangelhos destaca-se a cena da purificação do templo. Momento ímpar: Jesus reage com indignação e firmeza ao presenciar, como Jeremias, o desvirtuamento da finalidade do templo. As pontas se atam e o Messias radicaliza o gesto do Profeta, pois da palavra passa à ação.

“Como se aproximasse a Páscoa judaica, Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no recinto do templo os vendedores de bois, ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. Fez um açoite de cordas e expulsou do templo ovelhas e bois; espalhou as moedas dos cambistas e virou as mesas; aos que vendiam pombas disse:

— Tirai isso daqui, e não converteis num mercado a casa de meu Pai.” [6]

Compreende-se que o Bispo Macedo não queira se recordar da purificação do templo; melhor mesmo recorrer ao Sermão de Jeremias para esquecer da lição de Jesus.

O lobo e o homem

Se a ênfase na leitura do Antigo Testamento responde ao projeto político da IURD, há outra referência constante e menos óbvia em Plano de Poder. Eis a primeira ocorrência:

“Eles [os hebreus] passaram a viver no que os filósofos políticos denominam como estado de natureza do homem.

(…)

Perceba que, segundo Hobbes, nestas condições a pessoa não evolui e fica com uma mente de vassalo, dependência total de terceiros.” [7]

A obra-prima de Thomas Hobbes, Leviatã, é citada mais de uma vez e o horizonte descortinado pelo filósofo orienta estrategicamente a convocação da comunidade evangélica para interceder na cena política. A justificativa é sintomaticamente buscada no texto hobbesiano:

“Em Leviatã, Thomas Hobbes menciona o que estamos dizendo da seguinte forma: ‘Homem nenhum duvida da verdade da afirmação que segue: quando algo está imóvel, permanece imóvel para sempre, a menos que alguma coisa a agite’.” [8]

Como entender a sintonia forjada entre a leitura interessada do Antigo Testamento e o paralelo com o modelo hobbesiano?

Você já sabe: na próxima coluna arrisco uma hipótese.

[1] Edir Macedo com Carlos Oliveira. Plano de Poder. Deus, os cristãos e a política. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2008, p. 112, grifos meus.
[2] É importante reconhecer que nas páginas seguintes os autores mencionam Jesus, porém com o propósito de sugerir que “Ele nos deixa (…) importantíssimas lições de comunicação estratégica”. Idem, p. 114, grifos meus.
[3] Idem, p. 113.
[4] Ver o site oficial do Templo do Salomão: https://www.otemplodesalomao.com/templo-de-salomao/post/relembre-um-dos-momentos-mais-marcantes-da-reuniao-de-inauguracao-do-templo-de-salomao. O Bispo Macedo refere-se à passagem de Jeremias 9:23-24.
[5] Jeremias 7: 1-4 e 11 Bíblia do Peregrino. Luís Alonso Schökel (organização e notas). São Paulo: Editora Paulus, 2⁠ª edição, 2006, p. 1865–1866.
[6] João 2:13-16. Idem, p. 2551. A afirmação incisiva de Jesus alude ao final de Zacarias: “E já não haverá mercadores no templo / do Senhor dos exércitos naquele dia”. Zacarias 14:21. Idem, p. 2306.
[7] Edir Macedo com Carlos Oliveira. Plano de Poder. Op. cit., p. 31.
[8] Idem, p. 61.

 

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Plano de Poder: Teologia do Domínio e Igreja Universal – I

 

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