Por Paulo Batistella — Ponte Jornalismo
Quatro dos dez batalhões da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP) mais letais nos últimos quatro anos ainda não têm câmeras corporais. Esse é o período em que os dispositivos passaram a ser adotados no estado — primeiro com o programa Olho Vivo, de 2020, depois substituído pelo Muralha Paulista, criado pela gestão Tarcísio de Freitas (Republicanos).
O cenário foi identificado pela Ponte a partir de dados do Grupo de Atuação Especial da Segurança Pública e Controle Externo da Atividade Policial (Gaesp), do Ministério Público de São Paulo (MP-SP). Os números ficam disponíveis em um painel online e foram obtidos em formato aberto pela Ponte mediante pedido com base na Lei de Acesso à Informação (LAI).
A alocação das câmeras é hoje objeto de disputa judicial em um processo que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Em dezembro, o ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Corte, determinou que elas sejam “estrategicamente distribuídas para regiões com maior índice de letalidade policial”.
Na última quarta-feira (29/1), ao iniciar a testagem de novos dispositivos, a PM-SP escolheu para alocá-los uma unidade que é a 104ª mais letal. Em nota à Ponte, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) disse que a distribuição “é feita de forma estratégica”, abrangendo 52% do trabalho operacional no estado (leia a íntegra do posicionamento da pasta ao final da reportagem).
195 mortos no período
Os quatro batalhões sem câmeras entre os dez mais letais de São Paulo mataram juntos 195 pessoas no período. São eles: o 47º BPM/I (atuante em parte de Campinas e Indaiatuba), o 10º Baep (da região de Piracicaba), o 20º BPM/I (sediado em Caraguatatuba e responsável também por outras três cidades do Litoral Norte) e o 6º BPM/I (com atuação na cidade de Santos).
O último deles é o batalhão envolvido na morte ainda não esclarecida de Ryan da Silva Andrade Santos, menino de quatro anos baleado quando brincava em frente de casa, no Morro São Bento, em Santos, no litoral paulista, no dia 5 de novembro. Na ocasião, Gregory Ribeiro Vasconcelos, de 17 anos, também foi morto no local. Além disso, um adolescente de 15 anos foi hospitalizado após ser ferido.
No intervalo sob análise, ao menos 1.103 mortes foram cometidas por policiais sem câmeras, de um total de 2.953 — ou seja, 37%. O número pode ser ainda maior, já que os dados do Gaesp não especificam se os policiais de cada ocorrência utilizavam o dispositivo na ocasião do confronto, ainda que estivessem lotados em uma unidade contemplada pelo programa.
Entre outros casos recentes noticiados pela Ponte, a morte de Reginaldo Antônio Ferreira Júnior foi outra cometida por policiais sem câmeras. Na ocasião, ele foi baleado por agentes do 14º Baep, em Sorocaba. Os PMs alegam que teriam revidado a uma tentativa da vítima de alvejá-los, enquanto a família contesta essa versão e afirma ter sido plantada uma arma de fogo na ocorrência.

Em coletiva de imprensa no dia 10/02/2021, o governo do estado anuncia a compra de câmeras corporais para os agentes da corporação (Foto: Governo do Estado de SP/Divulgação)
Só 10 mil câmeras para 80 mil PMs
A Polícia Militar paulista conta atualmente com 10.125 câmeras em pleno funcionamento, distribuídas entre 70 unidades — número insuficiente para todo o efetivo, de cerca de 80 mil policiais. Há, ainda, outros 120 dispositivos sendo utilizados em fase de testes (entenda mais abaixo). Para cada turno, só metade dos aparelhos são usados, já que os demais passam por recarga de bateria e upload das imagens capturadas.
São Paulo realizou os primeiros estudos sobre o uso de câmeras em 2015, sob a gestão do então governador e atual vice-presidente Geraldo Alckmin (ex-PSDB, hoje no PSB). Cinco anos depois, foi implementado um primeiro lote de 500 dispositivos, já com João Doria (PSDB) à frente do governo.
Em 2021, elas foram substituídas por um lote de 3.125 câmeras. No ano seguinte, foram contratadas mais 7 mil unidades, totalizando o atual patamar. A gestão Tarcísio, que chegou a cortar recursos previstos em orçamento para as câmeras, não ampliou o número de aparelhos desde então. O governador ainda extinguiu o programa Olho Vivo e o incorporou ao Muralha Paulista — que não tem como prioridade a supervisão da atividade policial, mas sim o que chama de controle da mobilidade criminosa, o reconhecimento de pessoas com uso de tecnologia.
Em setembro do ano passado, o governo assinou um contrato com a Motorola para a aquisição de 12 mil novas câmeras, que irão substituir as atuais. A implementação ainda está em fase de testes. “O novo contrato de câmeras corporais representa um aumento de 18,5% na quantidade de equipamentos disponíveis, possibilitando sua expansão para outros comandos de policiamento que até então não possuíam a tecnologia”, enfatizou a SSP-SP, em nota à Ponte.
Tanto a expansão da quantidade quanto a alocação das câmeras já disponíveis são temas discutidos na Suspensão de Liminar 1.696, no STF, sob relatoria do ministro Luís Roberto Barroso. Em decisão de 9 de dezembro do ano passado, Barroso havia determinado que o Estado apresentasse, em 45 dias corridos, uma matriz de risco para a prioridade na alocação das câmeras. A gestão Tarcísio, por meio da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-SP), pediu a extensão desse prazo.
Naquele mesmo mês, no dia 26, ao reformar em parte a decisão anterior, o ministro reafirmou que as câmeras da PM-SP deveriam “ser estrategicamente distribuídas para regiões com maior índice de letalidade policial” — ordem que atendia a pedidos do MP-SP e da Defensoria Pública de São Paulo, que ajuizou o processo em razão da Operação Escudo. A pretensão da Defensoria era tornar obrigatório o uso dos aparelhos em ações como aquela, que resultou em alta letalidade.
Ainda na decisão, a mais recente do processo, Barroso havia ordenado que o uso das câmeras seria obrigatório em três tipos de operações, desde que realizadas em regiões com disponibilidade desses equipamentos: 1) As de grande envergadura para restauração da ordem pública; 2) As que incluam incursões em comunidades vulneráveis também para restaurar a ordem pública; e 3) Operações deflagradas para responder a ataques praticados contra policiais militares, como a Escudo.

Protesto em memória do pixador Reginaldo Júnior, o África Menor, morto por policiais de unidade do Baep não contemplada por câmeras corporais (Foto: Fábio Vieira/ FotoRua)
Critérios ‘técnicos’ para a distribuição
As câmeras se concentram distribuídas atualmente entre unidades dos comandos da capital e da região metropolitana. Parte da Baixada Santista e de grandes cidades do interior também está contemplada. No decorrer do processo no STF, em manifestação de junho do ano passado, a PGE-SP afirmou que a alocação delas segue critérios da Instrução-28 PM e da Diretriz nº PM3-001/02/22, ambas normativas da própria PM. A primeira delas regulamenta a distribuição do efetivo no estado, enquanto a segunda disciplina o uso das também chamadas câmeras operacionais portáteis (COP).
“A distribuição das câmeras corporais segue critérios técnico operacionais relacionados à modalidade de policiamento, mas, também, leva em consideração outros fatores igualmente relevantes, como o tamanho populacional e a quantidade de ocorrências na região”, escreveu o órgão, em manifestação assinada pela procuradora-geral, Inês Coimbra.
O documento foi acompanhado ainda de um ofício de teor semelhante, para embasar a manifestação da PGE-SP, assinado pelo coronel da reserva da PM Paulo Mauricio Maculevicius Ferreira, hoje chefe de gabinete do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite (PL). No ofício, Maculevicius afirmava ainda que eventuais novas câmeras seriam distribuídas para a Polícia Rodoviária Estadual, o Policiamento Ambiental e as Unidades-Escolas da PM-SP, vistos pela pasta como prioridade.
No andamento do processo, o edital lançado por Tarcísio para contratar novas câmeras retomou a discussão sobre a alocação. A Defensoria questionou que a contratação não previa a destinação preferencial delas. Além disso, os dispositivos não seriam mais do modelo de gravação ininterrupta.
O governo do Estado contra-argumentou que as unidades já contempladas permaneceriam com câmeras e que os demais aparelhos seriam distribuídos a partir de critérios que incluem a modalidade de policiamento, o tamanho da população e a quantidade e de ocorrências.
Teste em batalhão pouco letal
Ainda por meio da PGE-SP, o governo disse assumir o compromisso de priorizar o uso das câmeras em “operações policiais de grande envergadura realizadas pela Polícia Militar para a restauração da ordem pública, da utilização de tropa que esteja portando COP, ressalvadas localidades que não possuam infraestrutura que suporte o adequado funcionamento das câmeras”. E afirmou que o acionamento passaria a ser remoto, manual ou intencional.
A alegação do governo é de que, com esse modelo, o custo anual das câmeras cairia para R$ 51,9 milhões — atualmente o custo é de R$ 96,3 milhões por ano.
O ministro Barroso exigiu, no entanto, que seja mantido o modelo de registro ininterrupto até que a viabilidade técnica e a efetividade operacional dos demais dispositivos estejam provadas com base em evidências. Na quarta passada, a PM disponibilizou 120 das novas câmeras ao 1º BPM/I (na região de São José dos Campos) — que não contava com aparelho algum até então, para testá-las no que chama de Operação Assistida. A iniciativa experimental irá até 21 de março, quando será produzido um relatório.
Ao menos até lá, os antigos dispositivos com gravação ininterrupta serão mantidos em funcionamento nas unidades já contempladas até então.
A unidade escolhida para a testagem está longe de integrar as que tiveram maior índice de letalidade policial: no ranking geral, é a 104ª que mais teve mortes nos últimos quatro anos, com nove ocorrências. Se consideradas apenas as unidades sem câmeras, há outras 40 que foram mais letais no período — para ranqueá-las nesta reportagem, a Ponte considerou os óbitos cometidos exclusivamente por cada uma delas, já que há mortes que tiveram o envolvimento de mais de um batalhão.
Questionada sobre a razão da escolha do 1º BPM/I, a SSP-SP respondeu, em nota, que “as novas câmeras estão sendo atualmente testadas em condições reais pelo 1ºBPM/I, em São José dos Campos, batalhão que ainda não possui câmeras corporais. A operação assistida é acompanhada pelo STF, que vai receber relatórios sobre a implantação e desempenho dos novos equipamentos”.
‘Completamente errado’?
Coordenador de advocacy do Justa, plataforma de pesquisa que acompanha o processo sobre as câmeras no STF como amicus curiae (“amigo da corte”), o advogado Felippe Angeli diz entender que o teste dos novos dispositivos em um batalhão com menor letalidade não descumpre a ordem de Barroso.
Ainda assim, ele pondera que a suposta virada de chave de Tarcísio sobre as câmeras não se mostrou fidedigna até aqui: desde a corrida eleitoral de 2022, o governador, assim como Derrite, enfatizava ser contrário ao dispositivo; já em dezembro do ano passado, em meio à escalada de episódios de violência policial — quando um militar foi filmado jogando um jovem de cima de uma ponte em São Paulo —, o político assumiu que estava “completamente errado” até então sobre o uso dos aparelhos.
“Essa pressão popular, o aprofundamento da opinião pública a favor das câmeras e os vários escândalos de letalidade e brutalidade policial acabaram, de certa forma, constrangendo o governo a mudar sua postura. A narrativa mudou, mas de uma forma ainda insuficiente”, analisa o advogado.
“Não se tem clareza sobre o quanto essa mudança é ligada ao entendimento do problema”, questiona Felippe, “ou se é mais um posicionamento de cunho político-eleitoral, sem respaldo técnico. Por isso, é importante que a gente tenha as câmeras nesses batalhões mais letais”.
A ativista em direitos humanos Luana de Oliveira, articuladora da Rede de Proteção e Resistência ao Genocídio, tem uma avaliação semelhante sobre as pretensões de Tarcísio. Ela afirma que, se houvesse uma alocação das câmeras condicionada à letalidade, operações como a Escudo e a Verão teriam tido saldos menos graves. Além disso, as mortes pela PM seriam mais facilmente esclarecidas.
“Isso se aplica ao caso do Ryan, porque a versão dos policiais difere da dos moradores que presenciaram a ação. A câmera corporal, provavelmente, teria inibido essa ação desproporcional por parte da PM, que entrou em uma viela atirando de fuzil e vitimou um adolescente de 17 anos pelas costas e o menino Ryan. Se havia uma perseguição e os adolescentes que estavam na moto foram atingidos pelas costas, uma arma não letal poderia ter garantido a abordagem assertiva, sem o resultado das mortes”, diz Luana.
“A câmera inibe que o policial dê uma versão diferente do que realmente aconteceu, mas também o protege em casos que exigem o uso da força letal, comprovando a versão comumente usada da ‘troca de tiros’ que exige uma ação para ‘legítima defesa’”, pondera Luana. “O fato é que falta vontade política de diminuir a violência policial, porque essa prática está fundamentada no racismo sistêmico e estrutural que constitui nossa formação enquanto sociedade. A morte de corpos pretos e pobres nas periferias é justificada pelo combate ao crime organizado e pela falácia da guerra às drogas.”
O que diz a SSP
A Ponte questionou a SSP sobre a razão pela qual alguns dos batalhões mais letais do estado não estão contemplados por câmeras. A pasta respondeu que a distribuição é feita de forma “estratégica” e que o novo contrato de câmeras permitirá uma expansão do programa. Disse ainda que, para reduzir a letalidade policial, aposta em treinamento contínuo dos policiais e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo.
A SSP afirmou apurar com rigor as mortes decorrentes de intervenção policial, que considera consequência da reação de criminosos, e punir eventuais desvios.
Leia a íntegra da nota da SSP
“As forças de segurança do Estado são instituições legalistas que operam estritamente dentro de seu dever constitucional, seguindo protocolos operacionais rigorosos, com transparência e respeito aos direitos humanos fundamentais.
As mortes decorrentes de intervenção policial (MDIP) são consequência da reação violenta dos criminosos diante da presença policial. Todos os casos dessa natureza são rigorosamente investigados pelas polícias Civil e Militar, com acompanhamento das corregedorias, do Ministério Público e do Poder Judiciário, e nos casos em que essa dinâmica não é comprovada, os agentes envolvidos são punidos conforme determina a lei.
Para reduzir a letalidade policial, a atual gestão investe em formação contínua do efetivo, capacitações práticas e teóricas, e na aquisição de equipamentos de menor potencial ofensivo, como armas de incapacitação neuromuscular. Além disso, comissões realizam a análise das ocorrências para os ajustes dos procedimentos operacionais, sempre que necessário, bem como à orientação da tropa durante as instruções e treinamentos promovidos regularmente nas unidades policiais em todo o Estado.
A distribuição das atuais 10.125 câmeras corporais é feita de forma estratégica, de forma a contemplar batalhões de policiamento da Capital, Grande São Paulo e interior, como Santos e Guarujá, abrangendo 52% do trabalho operacional no Estado.
O novo contrato de câmeras corporais representa um aumento de 18,5% na quantidade de equipamentos disponíveis, possibilitando sua expansão para outros comandos de policiamento que até então não possuíam a tecnologia.
As novas câmeras estão sendo atualmente testadas em condições reais pelo 1ºBPM/I, em São José dos Campos, batalhão que ainda não possui câmeras corporais. A operação assistida é acompanhada pelo STF, que vai receber relatórios sobre a implantação e desempenho dos novos equipamentos.”
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