Por Catarina Duarte — Ponte Jornalismo
A cabeleireira Juliana Corrêa Arruda, de 38 anos, levou na bolsa um par de meias ao receber a notícia de que o filho Ruan Corrêa Arruda da Silva, de 22 anos, estava no Hospital Santo Amaro, no Guarujá, litoral de São Paulo, após cair de sua moto. Ela se lembrou que, quando se acidentou anos atrás, Ruan sentiu muito frio nos pés. Na ocasião, desprevenida, a mãe teve que tirar os tênis que usava para vesti-lo. Desta vez, no entanto, mesmo preparada, Juliana não pôde agasalhar o filho.
A certidão de óbito diz que Ruan morreu no dia 6 de fevereiro, última quinta-feira, por traumatismo cranioencefálico grave — lesão cerebral — e hemorragia causados por tiro de arma de fogo.
Auxiliar de campo em uma empresa de pesca, o jovem andava de motocicleta com amigos quando o grupo passou a ser perseguido por uma viatura da PM. A versão policial é de que a abordagem aconteceu porque o grupo estava empinando as motos e fazendo manobras perigosas. Em depoimento à Polícia Civil, o soldado Gabriel Roberto de Oliveira Pereira admitiu ter feito um “disparo acidental” para fora da viatura.
Um vídeo registrou o momento em que Ruan, já baleado, colide a motocicleta contra um carro estacionado na rua Waldemar Lopes Ferraz, no bairro Pae Cará.

Ruan Corrêa Arruda da Silva, de 22 anos, tinha no currículo cursos feito na Capitania dos Portos e no Senai (Foto: Arquivo pessoal)
‘Nunca mais vou ver meu filho’
Juliana, que postou um vídeo cobrando justiça na internet, diz que passou a ser alvo de intimidação. Segundo a cabeleireira, viaturas com giroflex desligado têm parado próximo à casa onde ela vive. “A polícia está tentando me intimidar, vindo aqui na frente da minha casa com a viatura apagada. Eles param e ficam olhando, mas não conseguem. Eu vou seguir lutando”, diz.
Ruan era o mais velho dos três filhos de Juliana. “Ele era o mais compreensivo”, conta a cabeleireira. Na tarde da última quarta-feira (5/2), mãe e filho conversaram por mensagens, hábito comum entre os dois, que sempre relataram os problemas e alegrias do dia a dia um para o outro.
Para completar a renda, Ruan também fazia serviços de entrega ou de transporte de passageiros. Juliana conta com orgulho que o filho tinha no currículo um curso da Capitania dos Portos e outro de logística feito no Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai).
“Eu não sei se meu sentimento é de raiva, de ódio ou tristeza”, relata à reportagem da Ponte. “Eu estava esperando esta entrevista e fiquei pensando, caramba, eu não vou ver meu filho nunca mais.” Ruan foi sepultado na sexta-feira (8/2) no cemitério da Consolação, em Vicente de Carvalho, distrito de Guarujá. Após a cerimônia, Ruan foi homenageado por amigos que carregavam faixas e vestiam camisetas pedindo justiça.

Amigos de Ruan fizeram homenagem ao jovem após o sepultamento no Guarujá (Foto: Arquivo pessoal)
Após tiro, PMs multaram Ruan
O boletim de ocorrência sobre a morte de Ruan tem quatro edições. A primeira delas foi concluída às 12h44. Novas versões, atualizando o que ocorreu, foram feitas às 16h49, 16h52 e a última às 22h22. A primeira delas traz apenas o relato do policial Gabriel e da soldado Brenda da Silva Lima Diniz, que também compunha a equipe. Nenhum dos dois disse que o tiro poderia ter atingido Ruan. A dupla contou que o jovem estava de capacete e que sofreu uma lesão na cabeça após a batida.
Gabriel e Brenda disseram terem visto durante seu patrulhamento vários motoqueiros empinando motos, realizando manobras perigosas e que alguns não usavam capacetes. Ao notarem a presença da polícia, o grupo teria fugido.
Na versão dos policiais, uma das motocicletas entrou na rua Waldemar Lopes Ferraz e passou a ser perseguida pela viatura. Ao fazer uma curva para acessar essa rua, Gabriel, que estava com a pistola em punho, “disparou acidentalmente” para fora da viatura.
Em seguida, Ruan colidiu a moto com um carro que estava estacionado, como mostra o vídeo da câmera de segurança de uma casa obtido pela Ponte. Os policiais chamaram o Samu e multaram Ruan, que estava com o licenciamento da moto vencido.
Pistola devolvida ao PM
A pistola glock.40, o carregador e as munições, que estavam com o policial Gabriel, chegaram a ser recolhidas. Contudo, às 16h49, o boletim de ocorrência informa que a arma foi devolvida ao soldado. A Ponte questionou a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) sobre a devolução. Em nota, a pasta afirma que o armamento passou por perícia [veja texto na íntegra no fim desta reportagem].
A terceira edição do BO não traz nenhuma informação nova. Já a última, feita na noite de quinta (6/2), informa sobre a morte de Ruan. A equipe do delegado Flávio Goda Mariano foi ao hospital e obteve o vídeo que mostra parte da ação [acima]. Somente nessa atualização, realizada às 22h, é que o tiro na cabeça de Ruan foi conhecido pela Polícia Civil. O caso, então, passou a ser investigado como homicídio e o policial Gabriel virou investigado.
O capacete de Ruan não consta entre os itens apreendidos. Para Juliana, mãe de Ruan, é essencial que o equipamento seja periciado, já que é uma prova do que aconteceu ao filho. A SSP-SP não respondeu sobre essa ausência.
O que diz a SSP-SP
A Ponte questionou a SSP-SP sobre a morte de Ruan. A secretaria foi perguntada sobre um possível afastamento dos policiais envolvidos, sobre a devolução da arma do crime ao policial, sobre a instauração de um Inquérito Policial Militar (IPM) e sobre a tentativa de intimidação narrada pela mãe do jovem.
Também foram solicitadas entrevistas com os agentes públicos citados. Segue a íntegra do texto da SSP-SP, que não responde a todos os questionamentos:
As policiais Civil e Militar apuram todas as circunstâncias da morte de um homem de 22 anos no Guarujá. A PM reforça que não compactua com excessos e desvios de conduta de seus agentes, e pune rigorosamente os que não respeitam as diretrizes da Corporação. Um Inquérito Policial Militar foi instaurado para investigar o caso.
Ocorrência
Policiais militares estavam em patrulhamento quando viram alguns motociclistas realizando manobras perigosas. Ao perceber a presença policial, eles fugiram. Os policiais relataram que durante o acompanhamento, a pistola de um deles disparou acidentalmente e atingiu o homem, que caiu da motocicleta após bater em um carro. O SAMU foi acionado e ele foi socorrido ao Hospital Santo Amaro, mas não resistiu. A arma do policial passou por perícia. O Instituto de Criminalística (IC) e o Instituto Médico Legal (IML) foram acionados.
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