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Corregedoria investiga possível participação de policiais em ataque neonazista

Músico foi agredido em 20 novembro de 2021, Dia da Consciência Negra, em São Paulo
25/09/2024 | 12h24

Por Ponte Jornalismo

Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo investiga a participação de um policial militar e de uma escrivã no ataque de um possível grupo neonazista contra um músico antifascista em 2021. O crime ocorreu em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, no dia 20 de novembro — data em que é comemorado o Dia da Consciência Negra.

A agressão, inicialmente investigada pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), foi remetida à Corregedoria da Polícia Civil em novembro do ano passado, após a informação de que um dos carros identificados como dos agressores pertencia à escrivã da Polícia Civil Katarina Freitas Reis. Neste caso, conforme o decreto 47.236/2022, a apuração cabe à Corregedoria, já que o alvo é um agente da corporação. Além de Katarina, o cabo da Polícia Militar Daniel Freitas Lemos também é citado no inquérito.

Investigação mostrou que carro em nome de uma escrivã e outro, de propriedade da mãe de um PM, se deslocaram de forma conjunta com outros dois veículos usados por suspeitos de agressão (Foto: Reprodução)

Dennis Sinned, de 41 anos, sofreu lesões no rosto, nos braços e na mão. No dia do ataque, o músico tocaria no bar Bomber Pub com sua banda. As agressões começaram enquanto ele aguardava o momento do show.

Um homem branco trajando luvas nas mãos e roupas pretas, rasgou a camisa de Dennis. Em seguida, ele foi derrubado e passou a receber socos e chutes de mais pessoas. Enquanto tentava se proteger, Dennis ouvia os agressores dizendo: “Acerta a cabeça.”

Além do músico, outra pessoa que estava no bar foi ferida com uma garrafada na cabeça. O grupo que promoveu o ataque usava máscaras que cobriam o rosto, portava garrafas de vidro e soco inglês. Um dos agressores, segundo o relato de testemunhas, estava com uma arma na cintura.

A Decradi começou a investigar o caso como lesão corporal. Foram analisadas imagens de câmeras de monitoramento, pesquisas de veículos envolvidos e relatos de testemunhas. Os investigadores então passaram a apurar denúncias de que os autores do ataque seriam neonazistas e a motivação das agressões seria político-ideológica. Um mês antes do ataque, a porta do bar foi pichada com uma suástica nazista e o número oito — uma alusão à oitava letra do alfabeto, o H, que simboliza a expressão “Heil Hitler”. Na mesma ocasião, um rojão também foi lançado contra o estabelecimento.

A conclusão dos investigadores foi de que quatro veículos partiram juntos para as proximidades do bar e, um pouco antes das agressões, um dos carros estacionou em frente ao Bomber Pub. O veículo, segundo a investigação policial, é de propriedade da escrivã Katarina.

Os demais pararam na rua Oscar Freire, para onde retornaram os onze agressores após baterem no músico. As imagens também mostram uma pessoa descendo do veículo da policial após o ataque. Essa pessoa recolhe algo no chão, retorna ao carro, e vai embora. Para os investigadores, a pessoa que estava neste veículo deu cobertura à ação.

Carro de propriedade de escrivã da Polícia Civil teria feito escolta dos agressores (Foto: Reprodução)

A Ponte teve acesso a toda a investigação. Os policiais passaram a ser investigados após a análise das placas dos carros levarem a ambos. No caso do policial Daniel Freitas Lemos, a investigação também apontou que ele curtia postagens de cunho nacionalista e fascista, inclusive incitando a agressão contra comunistas, no Facebook.

Em uma das publicações curtidas pelo PM, um homem usa uma camiseta escrito “Hooligan” e o desenho de um soco inglês. O termo hooligan é citado no inquérito em referência ao Impacto Hooligan, grupo neonazista paulista acusado pelo Ministério Público de ter jogado uma bomba no final da Parada Gay de junho de 2009, que causou ferimentos em cerca de 10 pessoas.

Policiais investigados

Por meio do sistema Detecta — um agregador de diversas bases de dados — os investigadores buscaram a leitura das placas de carros semelhantes aos usados pelos agressores. A identificação foi possível por meio de imagens de câmeras de monitoramento. Foram identificados veículos Ford Fiesta, Nissan Versa, Honda Civic Azul e Mitsubishi Pajero TR4.

Print de curtidas feitas pelo policial Daniel Lemos. Segundo a investigação, o agente curtia publicações de cunho nacionalista e fascista  (Foto: Reprodução)

O Nissan Versa identificado pertence à mãe do policial Daniel Lemos. No histórico levantado pela Polícia Civil, o referido veículo deixou Campinas, onde foi registrado, no dia em que Dennis foi agredido.

Há o relato de uma conversa com a proprietária registrada pelos policiais durante uma diligência. Segundo os agentes, a mãe contou que nunca foi para São Paulo de carro, mas que o filho sim. Daniel usava o veículo com frequência. O cabo ainda não foi ouvido pelo Decradi e nem pela Corregedoria.

O último é de propriedade de Katarina Reis. A escrivã ingressou na Polícia Civil em 2016 e estava na ativa quando o crime ocorreu. Em depoimento prestado em março deste ano, Katarina disse que não emprestava o carro para ninguém. Ela negou participação no crime e afirmou que dificilmente passava pela região do bar Bomber Pub.

Carros dos suspeitos andando em rua próximo do local das agressões (Foto: Reprodução)

Os demais veículos pertencem a Rafael Campos Firmino da Silva (proprietário do Ford Fiesta) e a Guilherme Witiuk Ferreira de Carvalho (Honda Civic). Ambos têm registros policiais por agressão. A investigação diz que Guilherme, mais conhecido como Chuck, é ex-integrante de grupos de extrema direita e tem passagens na polícia por crimes de intolerância.

Em depoimento prestado do Decradi em junho do ano passado, Chuck negou envolvimento nas agressões. No dia do ataque, Guilherme disse que acompanhava a filha internada no Hospital Santa Catarina. Ele também afirmou não ter o hábito de emprestar o veículo a ninguém.

Já Rafael Campos Firmino da Silva esteve envolvido em uma ocorrência de lesão corporal em 2006. A apuração feita à época descreveu os investigados como indivíduos de cabelos raspados, “característica comum aos grupos skinheads, de ideologia nazista”. Ele também não foi ouvido durante as investigações do Decradi.

Movimentação coordenada

Por meio de um identificador de placas, os investigadores descobriram que o Versa (da mãe do PM), o TR4 (de Katarina) e o Civic (de Chuck) estiveram no mesmo local naquele dia.

Horas antes da agressão, por volta das 18h, os três veículos tiveram as placas identificadas na avenida Prof. Ascendino Reis, nas proximidades da rua Pedro de Toledo. O Fiesta (de Rafael) esteve no local depois do crime, por volta das 22h. O endereço fica próximo da casa do investigado Chuck.

Veículo dos suspeitos estacionado na rua Oscar Freire. Segundo a investigação, os carros foram deixados pelos suspeitos, que retornam após a agressão (Foto: Reprodução)

Há outro elo entre os carros: na madrugada do dia 21, por volta da 1h, os carros da mãe do PM, de Katarina e de Chuck passaram pela avenida Paulista e, em seguida, pela avenida 9 de julho.

“Tais apontados indicam de forma contundente que os deslocamentos destes carros ocorreram de forma conjunta e ordenada, tanto antes como após os fatos”, escreveu a delegada Daniela Branco.

A investigação agora é conduzida pelo delegado Flávio Luiz Teixeira, da 4ª Delegacia de Crimes Funcionais. O inquérito ainda não foi concluído e, em agosto, foi aprovada pela Justiça a concessão de mais prazo para as investigações.

‘Ecossistema do neonazismo’

A apuração do Decradi investigou uma denúncia anônima que ligava o ataque a grupos neonazistas. Um deles é o Impacto Hooligan, apontado em depoimentos como possível autor da agressão. Chuck, investigado pela ação, já foi membro do grupo, segundo a investigação.

O professor de história contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e coordenador do Observatório da extrema direita Odilon Caldeira Neto explica que o Impacto Hooligan faz parte do “ecossistema do neonazismo no Brasil”. Um campo heterogêneo, com representações que vão desde pessoas que agem de forma isolada a editoras que publicam traduções de livros revisionistas, que negam o holocausto.

Odilon afirma que uma das principais formas de articulação de grupos nazistas globalmente desde a década de 1970 é a chamada cena skinhead. Apesar de originalmente o movimento não ter ligação com o fascismo, houve a consolidação desses grupos no cenário.

O pesquisador explica que, no Brasil, a partir da década de 90 se consolidou a cena skinhead white power como uma via autônoma. Ele cita a vertente dos Carecas do ABC, grupo nacionalista que aceita negros e nordestinos entre seus pares. Outros grupos também passaram a adotar a simbologia nazista e o discurso da supremacia racializada. O Impacto Hooligan surge neste contexto.

Odilon diz que o ataque sofrido pelo músico sugere uma típica ação desses grupos. “É um tipo de repertório muito comum da cultura skinhead, e sobretudo da cultura skinhead neonazista”, comenta.

Problema de formação

O pesquisador diz não ficar surpreso com a investigação alcançar dois policiais. “Não é raro você verificar a presença de policiais em torno de organizações de extrema direita, porque existe, digamos, o apego à autoridade, ao ultranacionalismo, a uma certa ótica de desconfiança contra minorias e movimentos sociais. Isso é uma característica do campo militar brasileiro”, diz. Uma aproximação que não se restringe ao Brasil. Odilon cita como exemplo a Alemanha, onde mais de 400 policiais são atualmente investigados por extremismo.

Essa proximidade, alerta o pesquisador, é extremamente grave. “Isso demonstra um problema de formação desses setores militares no Brasil. Um problema também de acompanhamento das pessoas que fazem parte das classes militares, não somente do Exército, mas das polícias no Brasil também”. Há ainda um problema no mapeamento dos grupos de extrema direita. “Não deveria ser necessário um inquérito policial para saber que existem pessoas das polícias presentes nesses grupos”, completa.

Odilon lembra que a legislação brasileira que proíbe símbolos como a suástica foi criada no âmbito da transição democrática e do surgimento dos primeiros grupos neonazistas no país. E que existe a necessidade de atualização das legislações sobre o discurso de extrema direita e neonazista. “Certamente, antes de visualizar um símbolo como a suástica, esses grupos, esses indivíduos, no processo de formação ideológica deles, inclusive nas ruas ou preponderantemente nos meios digitais, passam por uma simbologia muito diversificada”, registra.

O que dizem as autoridades

A Ponte procurou a Secretaria da Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP) solicitando entrevista com um porta-voz da instituição, com agentes públicos citados na reportagem e com a própria delegada do caso. Não houve retorno. Caso a SSP-SP responda, a reportagem será atualizada com o posicionamento.

O que dizem os outros investigados

A Ponte não localizou os contatos dos demais investigados. Caso algum deles queira se manifestar, o espaço está aberto e a reportagem será atualizada com seu posicionamento.

 

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