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Sob cerco de pistoleiros, povo Pataxó completa um mês em retomada na Bahia

Indígenas ocupam área da TI Comexatibá e denunciam vereador de Prado (BA) por venda clandestina de lotes no território
25/11/2024 | 19h52

Por Gabriela Amorim e Fernanda Lelles — Brasil de Fato

Em novembro, completou-se um mês desde que um grupo de indígenas Pataxó, protagonizado por mulheres, retomou parte da Terra Indígena (TI) Comexatibá, na cidade de Prado, no extremo sul da Bahia. O território teve o processo demarcatório iniciado em 2015, mas até o momento não foi concluído. Localizado em região litorânea turística, a área tem sido usada para loteamentos voltados à construção de casas de luxo.

A derrubada de um cajueiro no último 21 de outubro foi o estopim para que as indígenas liderassem a entrada na área, alvo de desmatamento, especulação imobiliária e venda irregular de lotes, de acordo com o povo Pataxó.

“Chegou a informação de que derrubaram um cajueiro. O ano passado já tinham derrubado mangabeiras e outras árvores nativas e deixaram todas jogadas no chão. Fizemos denúncia, mas nada foi feito. Então nos reunimos para ir ao local dessa vez”, conta uma das mulheres que lidera a ocupação, que não será identificada por motivos de segurança. Segundo as lideranças, a vegetação nativa – uma das últimas reservas de mata Atlântica da Bahia — tem sido derrubada a mando de “empresários”.

Cajueiro derrubado teria motivado ocupação de indígenas Pataxó em área sobreposta à TI Comexatibá (Foto: Fernanda Lelles/Brasil de Fato)

Em carta pública entregue ao Ministério Público Federal (MPF), à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e ao Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o povo Pataxó denuncia que o desmatamento está sendo feito a mando do fazendeiro André Moreira Gama e seu irmão Genivaldo Moreira Gama, com envolvimento do vereador Brenio Pires (Solidariedade), que está no seu terceiro mandato. O objetivo seria a realização de novos loteamentos. Os indígenas denunciam, ainda, a exploração ilegal de areia que ameaça nascentes de rios.

Desde a ocupação, os Pataxó relatam viver sob cerco de pistoleiros nas proximidades da área em que o vereador Brenio Pires realiza loteamento: “Eles só não atiraram porque estávamos com celular e falamos que estávamos ao vivo”, conta uma liderança. O vídeo feito pelos indígenas circulou nas redes sociais. Ver a morte de frente, contou uma liderança à reportagem, os fez ter mais força para continuar a lutar pela preservação do território ancestral.

 

Segundo relatos dos indígenas, Pires foi até a área e acionou a Polícia Militar (PM). Já os Pataxó chamaram a polícia integrada ao gabinete de crise criado pelo governo federal para solucionar os conflitos territoriais da área, que se agravaram desde 2022, quando pistoleiros assassinaram o indígena Gustavo Silva da Conceição, de 14 anos, e balearam Pablo Yuri da Conceição Cruz. Na ocasião, a resposta do governo federal foi o fechamento da unidade da Funai que funcionava em Cumuruxatiba (BA), o que, como advertiu o órgão, poderia piorar ainda mais os conflitos territoriais.

Em áudio atribuído ao fazendeiro André Gama é possível ouvir uma convocação ao grupo de produtores rurais presidido por ele: “Estamos precisando de todo mundo aqui porque os indígenas tomaram a estrada aqui… Hoje, agora é a nossa chance de ficar livre desse povo, venham!”.

Após o chamado de Gama, o vereador Pires acompanhado de outros homens, apontados pelos Pataxó como grileiros do território, chegaram à área retomada. Os indígenas colocaram fogo na estrada para impedir a passagem dos pistoleiros armados e encapuzados que os cercaram. Ainda de acordo com os Pataxó, a suspeita é que Pires faça parte do grupo “Invasão Zero”, apontado como miliciano pela Polícia Federal e acusado de assassinar indígenas a mando de fazendeiros.

Indígenas Pataxó ao redor do carro do vereador Brenio Pires (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo relatos dos Pataxó, três homens foram levados pela polícia, mas só dois deles de fato foram encaminhados à delegacia, em Teixeira de Freitas. Os indígenas suspeitam que o terceiro homem armado e mascarado que “sumiu” seja um policial que teria tido sua fuga facilitada no caminho pelos colegas da polícia. Segundo as lideranças que acompanharam a viatura, as armas apresentadas na delegacia eram diferentes das que os pistoleiros usavam para ameaçá-los.

Em nota, a ouvidoria da Polícia Civil informou que Luciano Mendes de Brito e Clebson Eliezer Caja foram levados à delegacia no dia 28 de outubro “por supostos crimes de ameaça e posse ilegal de arma de fogo figurando como vítimas das ameaças os indígenas”. Informa ainda que “um terceiro indivíduo reportado pelas vítimas não foi apresentado ao Plantão da Polícia Civil”.

Ainda de acordo com o órgão, foi encontrada “uma espingarda calibre 20, desmuniciada, sem identificação do responsável pela referida arma”. A nota finaliza informando que o expediente foi “encaminhado ao Titular da DT/Prado [Delegacia Territorial de Prado], que lavrou a ocorrência pelo crime de ameaça e o encaminhou à Vara Criminal”.

Mansões, assentamento do Incra e TI Pataxó em uma só área

Os 28.077 hectares que compõem, de acordo com o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da Funai, a TI Comexatibá, foram quase todos transformados em um assentamento de reforma agrária pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 1987. O Projeto de Assentamento Fazenda Cumuruxatiba está sobreposto a 93,95% da área tradicional Pataxó. Já o Projeto de Assentamento Reunidas Corumbau se sobrepõe a 30,37% da Terra Indígena. A TI também tem 19,62% da área sobreposta ao Parque Nacional do Descobrimento, sob gestão do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).

Como a fiscalização das terras é escassa por parte do Incra e da Funai, que relatam falta de pessoal para cumprir tal função, se tornou prática comum de grileiros a venda de áreas de preservação ou dos assentamentos em forma de lotes, algo proibido pela lei.

Os indígenas denunciam a existência de 20 loteamentos clandestinos, ou seja, de não assentados ou de proprietários que vendem lotes a pessoas de fora da região, incluindo estrangeiros. Lotes do assentamento têm sido vendidos, inclusive, para a construção de mansões. A área fica próxima das famosas praias de Cumuruxatiba e Corumbau.

 

Aguardando há quase uma década que o processo demarcatório avance — falta ainda a portaria declaratória do Ministério da Justiça, a homologação e o registro da TI –, os indígenas decidiram retomar parte da área para fazer, por conta própria, a autodemarcação.

Questionado pelo Brasil de Fato, o Incra informou que “a área proposta pelo relatório da Funai do território indígena de Comexatibá, onde hoje há um assentamento de trabalhadoras e trabalhadores rurais criado em 1987, ainda não teve a sua portaria de criação publicada. Desse modo, não houve a destinação oficial da área para os indígenas”.

O Ministério Público divulgou recomendação de que sejam paralisados empreendimentos e loteamentos na região.

Já a Funai declarou que precisa de mais tempo para responder, devido à complexidade do assunto. A reportagem será atualizada caso chegue a resposta do órgão aos questionamentos realizados.

O vereador Brenio Pires afirmou que as narrativas vindas a público envolvendo seu nome são infundadas e motivadas por “perseguição política”: “Moro em área que já foi do Incra e hoje já não pertence mais”. O vereador afirmou que poderia enviar a certidão de ofício liberatório, mas não o fez até a finalização da reportagem. Negou as práticas de desmatamento e loteamento irregular e afirmou que os fatos ocorridos em 21 de outubro foram no lote de propriedade de André Gama.

André e seu irmão Genivaldo Gama realizaram vídeos alegando serem apenas agricultores que foram retirados de suas terras após anos assentados. Em resposta sobre a acusação de desmatamento, André afirmou: “Está sendo baseada na derrubada de um único pé de caju que eu mesmo plantei e não sabia que para arrancá-lo precisaria de autorização, porém, já me comprometi a replantar 50 pés de caju em locais a serem determinados pelo ICMBio”.

 

Contou ainda que sofreu uma invasão há quatro anos e distribuiu parte de suas terras a familiares: “Eu doei para meus irmãos, sobrinhos e familiares lotes para que construíssem suas casas e inibisse futuras invasões”.

Genivaldo respondeu: “Os índios invadem a minha terra, tomam minha terra, desmatam minha terra, eu denuncio, o ICMBio vai lá, olha, e diz que não pode fazer nada e agora vocês vêm com graça, comigo, rapaz!”. Relatou ainda estar indignado, que precisa colher sua roça, que não pode mais entrar e que teve seu carro apedrejado pelos indígenas.

No domingo de 3 de novembro, indígenas relataram disparos de tiros nas imediações da retomada como tentativa de intimidação. Contaram também que houve uma conversa com o vice-prefeito de Prado, Antonio Carlos da Silva Magalhães Neto, em que ouviram que teriam uma trégua de 15 dias para “pensarem bem” a ocupação. Na ocasião, o vice-prefeito os teria alertado de quão perigosas são as pessoas que eles enfrentam.

A assessoria de comunicação do vice-prefeito negou os relatos dos indígenas e informou que houve uma tentativa de mediar o conflito e pactuar uma trégua e que está sendo marcada reunião dos envolvidos com prefeitura, Incra e o Ministério Público Federal.

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