Por Gabriela Moncau — Brasil de Fato
Fogos de artifício foram lançados da Terra Indígena (TI) Potiguara de Monte-mor, no norte da Paraíba, em 5 de dezembro. Cacica Cal, como é chamada Claudecir Braz, neste momento estava em Brasília. Ao lado de outras lideranças indígenas e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assinou e recebeu o documento de homologação da TI, reivindicado há ao menos quatro décadas pelo seu povo.
“Um sonho esperado por tantos anos, por tantas pessoas que iniciaram esse processo e que hoje já não estão mais entre nós. Em carne, né, mas em espírito estão. Foi uma alegria imensurável”, comenta cacica Cal, integrante da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme).
Composta pelas aldeias Monte-mor, Jaraguá, Ibiquara, Lagoa Grande e Três Rios, a TI Potiguara de Monte-mor foi identificada e delimitada pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em 2004. Três anos depois, 400 Potiguara ocuparam a sede da Funai em João Pessoa (PB) e pressionaram pela assinatura da portaria declaratória pelo então ministro da Justiça, Tarso Genro. Em 2009, foi feita a demarcação física dos 7.530 hectares e, ao longo dos últimos 15 anos, os indígenas aguardaram a canetada da homologação, etapa final do processo demarcatório.
Aníbal Cordeiro Campos, cacique da aldeia Jaraguá, nem estava esperando. “Porque já tinha ido várias vezes a Brasília receber a homologação e não pudemos ser garantidos”, explica. Aníbal foi um dos que se frustrou quando, durante o Acampamento Terra Livre em abril, o presidente demarcou apenas duas das seis terras esperadas pelo movimento indígena.
“Agora conseguimos”, sorri o cacique, sem desfazer uma expressão preocupada. “Mas o risco de vida que estamos correndo agora… Porque tem que tirar os posseiros de dentro da área. Queira ou não queira”, defende. Segundo Campos, há cerca de 150 pequenos posseiros brancos apenas em sua aldeia.
“A relação é boa, mas quando veio a notícia da terra homologada, já vieram com outros olhos. Pensaram que nunca ia ser homologada e que nunca iam sair do território. E agora têm a certeza de que vão sair”, avalia Aníbal.
O Brasil de Fato questionou o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) mais de uma vez sobre a quantidade de não-indígenas que devem ser retirados da área, quando e como será feita a desintrusão, mas não teve resposta até o fechamento desta matéria. Caso venha, o texto será atualizado.
A situação da TI Potiguara de Monte-mor é particular. Localizado nos municípios de Marcação (PB) e Rio Tinto (PB), ao território tem 10.966 habitantes. Quem cruza desavisado a ponte que sai do centro de Rio Tinto para uma área mais periférica pode não notar que passou a pisar em território indígena.
Urbanizada, a aldeia Monte-mor inclui, em meio a símbolos Potiguara, um galpão de fábrica desativada, casarões e chalés de estética europeia, com tijolos maciços aparentes. São marcas do principal conflito dos indígenas pelo seu território: a cidade foi erguida e dominada pela família sueca Lundgren, que ali instalou a Companhia de Tecidos Rio Tinto e, décadas mais tarde, arrendou terras para usinas de cana de açúcar. São numerosos os não-indígenas que vivem na região.
O domínio da Cia de Tecidos na Terra Indígena
De acordo com o Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) da TI publicado em 1997 há registros de presença Potiguara no litoral paraibano desde o século 17. No começo do século 20, no entanto, os indígenas conheceram os Lundgren.
“Da jaqueira até ali”, aponta Aníbal, “tinham 150 casas de palha. Numa maldita noite a companhia tocou fogo nessas casas. Muitos morreram e muitos correram”. A sua avó, Antônia, era criança. “Os pais dela, os irmãos dela, morreram queimados. Minha avó contava”, diz.
No lugar da aldeia, foi erguida uma vila operária. “Fizeram essas casas e começaram a empregar os índios. Aquele que não queria morrer, ficava para ser empregado da companhia. A terra não é dela”, contou Vado Ribeiro, antigo cacique da aldeia Monte-mor, em depoimento dado em 2002 à Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Importante liderança Potiguara, Vado morreu dois anos após a entrevista.
A família sueca, que fundou também as Casas Pernambucanas, instalou a fábrica em 1918. O objetivo foi abrir o empreendimento “em terras distantes e de difícil acesso, de modo a evitar interferências externas de cunho oficial ou sindical sobre as relações de trabalho e de mando nos seus domínios”, aponta o antropólogo Estêvão Martins Palitot, no artigo Os Potiguara de Monte-mor e a cidade de Rio Tinto: a mobilização indígena como reescrita da história.
O coronel Frederico Lundgren, cuja estátua faz parte da paisagem de Rio Tinto, representou o ponto máximo da autoridade centralizadora da família sobre a população, composta pelos indígenas e os cerca de 20 mil trabalhadores trazidos de outros estados. O coronel “enfeixava todas as relações em torno de si”, escreve Palitot: “Tudo na cidade pertencia à fábrica, do trabalho à moradia, do lazer à religião, pois até as igrejas e os prostíbulos eram propriedade da companhia”.
Na metade da década de 1970, a Companhia de Tecidos Rio Tinto entrou em crise, demitiu trabalhadores em massa e tomou a decisão que faz com que a região seja, até hoje, rodeada de monocultura de cana. Chegam as usinas Agroindústria Camaratuba, do grupo Miriri, Rio Vermelho Agropastoril Mercantil S.A e Japungú. A fábrica têxtil fecha definitivamente nos anos 1990.
Questionado sobre a luta por demarcação, Aníbal opina que “a primeira ação” quem fez foi um indígena conhecido por Zé Soares. Em 1983, ele e outros quatro mataram o administrador da fazenda Rio Vermelho, da empresa têxtil. “A cia de tecidos ainda estava rodando, a todo vapor mesmo. Mas aconteceu. Foi o primeiro conflito, em Lagoa Grande”, narra Aníbal.
Uma edição de 1989 do jornal O Momento, disponível no acervo do Instituto Socioambiental (ISA), noticia que “a vítima foi abatida a golpes de foice, facão, machado e faca-peixeira” e que um policial militar escapou por pouco. A matéria informa que o juiz transferiu o julgamento dos acusados para João Pessoa (PB), pois em Rio Tinto os jurados se sentiam intimidados pela população indígena.
É “Seu Vicentinho”, no entanto, o nome citado por indígenas ouvidos pela reportagem como “aquele que começou a luta” – ao menos o ciclo mais recente dela. Vicente José da Silva foi cacique da aldeia Jaraguá e, em 1985, articulou algumas famílias para iniciar o processo de retomada de suas terras, na época dominadas pelas usinas de cana.
Do alto do seu cerca de 1 metro e meio de altura, Seu Vicente “não abaixava a cabeça para latifundiário, não”, descreve cacique Aníbal. Na época com 14 anos, Aníbal se juntou ao grupo que se organizou para entrar nas áreas, arrancar os canaviais e fazer roça de alimentos.
“Seu Vicente chamou a gente para a igreja, para nós se reunir e fazer o planejamento para tomar nossa terra de volta”, relata Aníbal. No início, a adesão foi pouca, já que o medo da companhia era muito. Mesmo assim, foram em frente. “Acompanhei desde o começo. Mas vi a vitória, né? Eles não viram, porque Deus chamou, né, mas eu estou aqui para contar a história e ver”, diz Aníbal.
No próximo 27 de dezembro, os Potiguara comemoram a homologação do território com uma festa em frente à Igreja Nossa Senhora dos Prazeres. Foi ali a primeira reunião para organizar as retomadas que se expandiram ao longo das décadas seguintes.
Dona Bilui, como é conhecida Maria dos Prazeres Bezerra, tem hoje 63 anos e participou das ocupações de terra junto com sua mãe, dona Luísa, que foi uma respeitada anciã Potiguara.
“A gente ficava né, porque era uma briga. A gente não queria perder o lado da gente. A gente ficava de noite, não era só uma pessoa, eram muitas pessoas. Ficava lá vigiando, porque era muito arriscado né?”, rememora Bilui, gesticulando em uma cadeira de balanço em sua casa, localizada em área reconquistada desta forma pelos indígenas.
“Aqui mesmo eram as barracas. Lá na mata tinha umas casas da fazenda lá que o povo ficava tudo acampado lá”, lembra dona Bilui. “Aí a luta foi crescendo, crescendo. As viagens para Brasília, a gente não sabe nem da soma, porque foram muitas viagens. E nada de sair, mas, graças a Deus, agora saiu”, sorri, olhando para cima.
“Em 2003, a gente ocupou uma área maior para demandar a demarcação da aldeia Três Rios e, em 2005, a gente retomou todo esse território que você hoje passa e vê urbanizado, dentro da aldeia Monte-mor”, conta a cacica Cal.
Foi também neste período que os indígenas definiram coletivamente parar de pagar aluguel para a família Lundgren. “As áreas de capoeira que tinha dentro da mata a gente era obrigado a pagar arrendamento à Cia de Tecidos Rio Tinto. Veja que absurdo: eles invadem nosso território e ainda nos cobram para que possamos trabalhar e tirar nosso sustento”, relata a cacica.
Não sem conflito e ameaças de despejo: a partir da metade da década de 2000, os indígenas boicotaram o aluguel cobrado para que pudessem estar em sua própria terra. Os outros moradores da cidade, no entanto, só conseguiram mudar essa condição em 2022. Há pouco menos de dois anos, o governo da Paraíba desapropriou dos Lundgren, no valor de R$ 23,5 milhões, as residências de 700 famílias de Rio Tinto.
O palacete
A residência dos próprios Lundberg, um palacete de três andares construído nos anos 1930, fica na aldeia Jaraguá e está hoje abandonado. Por terem recebido ali alemães que fugiram da Segunda Guerra Mundial (1939–1945), boatos de uma suposta simpatia da família ao regime nazista persistem até a atualidade.
Se dependesse do cacique Aníbal, o edifício seria destruído. “Esse palacete foi construído em cima das cinzas do nosso povo”, afirma. A intenção da comunidade, no entanto, é fazer do prédio um museu sobre a história indígena da região.
“Todo o terreno em volta onde você viu a cana de açúcar não é mais do fazendeiro. Hoje é dos indígenas. Em 2010 nós colocamos para fora do nosso território o último fazendeiro que estava instalado aqui”, atesta a cacica Cal.
“Hoje, diferente do que os usineiros fizeram, nós plantamos a cana de açúcar. Mas com a responsabilidade de recuperar toda a área que eles ora destruíram. Cada família indígena que tem seu pedaço de cana plantado tem obrigatoriamente que repor 20% da mata ciliar, de mata atlântica”, explica. “A gente teve o retorno das nascentes, da qualidade de vida que tínhamos perdido com a invasão das usinas”, conta Braz.
Vislumbrando os desafios após a homologação do território, cacique Aníbal pontua que é preciso “se preparar pelo futuro que queremos deixar para os nossos curumins [criança em tupi-guarani]. Que a terra nós conseguimos. Agora eles que têm de cuidar dela. Nós já estamos cansados e a qualquer momento Deus pode chamar a gente, né, tem que ter aqueles guerreiros para tomar conta”.
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