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Preso e torturado pela ditadura, jornalista foi demitido da Folha em 1975 por ‘abandono de emprego’

Em entrevista ao ICL Notícias, Sérgio Gomes recorda cumplicidade da Folha com a ditadura, a tortura na cadeia e a morte de Vladimir Herzog
20/06/2025 | 13h00
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Por Roger Worms

O documentário “Folha Corrida“, dirigido por Chain Litewski, oferece uma nova e profunda perspectiva sobre o envolvimento do grupo Folha de S. Paulo com a ditadura militar e seus órgãos de repressão após 1964. Com todos os episódios disponíveis para membros do ICL, a obra traz depoimentos que revisitam esse período trágico da nossa história recente, expondo a colaboração da empresa com o aparato repressivo. Entre os relatos, está o do jornalista Sérgio Gomes, que foi funcionário da Folha, militante do PCB e uma das vítimas da repressão.

Gomes foi preso em outubrode 1975, torturado e sobreviveu aos porões do DOI-Codi, onde quase perdeu a vida. Ele revela nesta entrevista detalhes cruéis, descrevendo as torturas praticadas contra opositores do regime, incluindo a passagem de Vladimir Herzog pelas salas de morte da ditadura.

Relata, inclusive, como foi demitido da Folha por “abandono de emprego” quando estava preso e submetido à tortura por parte dos gorilas do regime de exceção.

Ele passa a limpo 50 anos da história de militância e resistência. Gomes é testemunha do período devastador que enfrentaram aqueles que ousaram resistir à opressão. O documentário é um esforço para resgatar essa memória, contribuindo para o reconhecimento e reflexão sobre esse capítulo sombrio de nossa história.

Sérgio Gomes

Sérgio Gomes

ICL Notícias – Qual é o fato novo que temos a partir do documentário “Folha Corrida”? 

Sérgio Gomes – O fato é que temos uma reportagem, são fatos e fatos desencadeados de tal maneira que ali temos um bom jornalismo informativo, um bom jornalismo interpretativo que dá condições das pessoas terem, afinal, uma opinião que não seja folclórica, uma opinião abalizada.

O diretor do documentário, Chain Litewski, na pré-estreia disse que o compromisso era com a historiografia, e eu acho isso fundamental, sobretudo com esse passado recente que some rapidamente. As pessoas têm até condições de falar e comparar coisas e acontecimentos de dois, três, quatro séculos atrás, dois milênios ou como nasceu o universo. Aí você tem os telescópios que podem descobrir desde quando se existe. E, quando se chega à história mais recente: onde estão as ossadas, o que foi realmente que aconteceu, quem matou quem? Qual foi a sequência de leis de ameaças que produziram mudanças no ambiente político que permitiu isso ou aquilo?

Então, o papel dos indivíduos e o papel das pequenas instituições, no caso brasileiro, tem um peso, vamos dizer, desproporcional quando você pensa nos indivíduos em países de democracia estável, como Europa, por exemplo. Aqui, a depender de quem esteja na direção da instituição, a instituição é uma coisa ou é outra. Quem é o presidente da Câmara dos Deputados? Se for fulano, já sei como se comporta. Se for beltrano, já se sabe como se comporta. Isso vale também para a Folha de São Paulo.

É esse trabalho de investigar quem é que dirigia, quem tinha mando e comando, tanto visível quanto escondido, invisível, subterrâneo, para revelar o que é, de onde veio tanta pujança do grupo Folha, que deu as cartas e continua dando muitas delas. Hoje, o grupo é um banco, coisa de R$ 10 bilhões.

Existe uma ação no Ministério Público ou algum processo contra a Folha de São Paulo? 

Não existe processo contra a Folha de São Paulo neste momento. Existe um levantamento para que, eventualmente, a procuradoria e o MP possam abrir um processo. Existem as oitivas a partir desse livro (“A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na Ditadura”, Ed. Mórula) e dessa pesquisa que tem origem quando a Volkswagen reconheceu.

Houve um trabalho conjunto do sindicato dos metalúrgicos de São Bernardo com os sindicatos dos metalúrgicos alemães, ambos empregados da mesma empresa, a Volkswagen, que reconheceu, tantos anos depois, quatro décadas, quase cinco, que realmente perseguiu os seus funcionários, foi cúmplice da ação repressiva, da gente que foi presa, que foi torturada por cumplicidade da Volkswagen.

A empresa reconheceu, e ao reconhecer existe uma coisa que não sei se tecnicamente se chama “Termo de Ajuste de Conduta”, onde ela ficou de pagar milhões às pessoas prejudicadas e uma parte desse recurso, para financiar uma pesquisa, seria sobre dez outras empresas que teriam sido cúmplices da ditadura. Seriam nove mais a Folha de São Paulo, onde ela seria o único veículo de comunicação.

Está sendo feita essa pesquisa, sondagem e levantamento, e essa equipe que ficou encarregada pela Folha, não apenas produziu um livro que acabei de ler, que é magnífico, como também esse filme, que vai permitir, com ajuda do ICL, que mais gente, que não lê, saiba das coisas e seja capaz de concluir por sua própria cabeça. E confesso que assisti a esses dois primeiros episódios na Cinemateca, e muita coisa eu não tinha a menor ideia de que tinha rolado daquele jeito. Quem é que era. O fato é esse: que a Folha de São Paulo, que normalmente trata dos outros publicamente, papel do jornalismo, agora vai tratar dela também publicamente.

Acredita que é uma reparação histórica, pelo menos? 

Sim, acho que essa é a principal reparação.

Folha

Você tem uma importante ligação com Vladimir Herzog. Poderia nos contar como começou?

Por duas razões: quando eu era estudante de Comunicação, fazendo o curso de Jornalismo na USP, conseguimos o sábado, que era um dia eletivo, mas quem programava era o centro acadêmico. Então, nós podíamos fazer no sábado com os professores que gostaríamos de ter. E a redação que tinha os jornalistas mais qualificados, que poderiam ser mais estimulantes para nós, estudantes, era a da revista “Visão”, que reunia ali o time dos sonhos.

O editor de Educação e Cultura era o Vlado, embora jovem. Lembre-se de que ele morreu com 38 anos, foi assassinado aos 38. Ele foi, durante 10 anos, editor de Educação e Cultura da revista “Visão”. Foi aí, nessa coisa de convidar jornalistas para falar na faculdade, que o conheci. Não fui amigo íntimo do Vlado, ele nunca veio à minha casa ou eu fui à casa dele, mas existia essa relação fraternal e eu era, na verdade, uma espécie de pauteiro do que acontecia no meio universitário. Ia lá, me reunia na revista Visão para dizer as coisas que estavam começando, sobretudo coisas que significavam a possibilidade de florescer o futuro.

Então, não era exatamente a minha pauta, não era: “foi torturado… etc e tal…”. Tudo bem, tem que ser feito isso, mas também valorizar as coisas que significam ocupar espaço político democraticamente, de tal maneira que, com isso, milímetro a milímetro, centímetro a centímetro, se vá conquistando a normalidade da vida.

No nosso caso, tínhamos decidido lá na ECA, no centro acadêmico, fazer de conta que a ditadura não existia! Então, vamos organizar cineclube, editar jornal, revista Balão com os cartunistas, fóruns de avaliação e planejamento do curso. Tudo isso era possível, conversar com as outras faculdades, montar um jornal semanal dos centros acadêmicos todos. Começamos com cinco e fomos até vinte e três.

Que tipo de parceria você tinha com Herzog?

Essa amizade permitiu que, em 1973, quando houve o golpe no Chile, em 11 de setembro, surgisse um movimento mundial dos estudantes em solidariedade ao povo chileno. Eu fui ao Congresso internacional dos estudantes em Buenos Aires, eu e mais três estudantes, partindo aqui de São Paulo, clandestinamente, porque a UNE estava na clandestinidade e o Brasil não se fazia representar por sua entidade, pois estava perseguida e escondida. Mas se abriu a possibilidade de observadores, que foi o nosso caso. Então, foi uma delegação de quatro jovens do PCB, dois de São Paulo e dois do Rio de Janeiro, para acompanhar o congresso e, na volta, ver como poderíamos fazer coisas para nos somar.

Havia um risco de, na ida, na Argentina ou passando pelo Uruguai — que já estava se tornando uma ditadura —, e aqui uma ditadura, de eu ser preso. O que eu fui fazer na Argentina? Então, o Vlado, eu pedi e ele fez: atribuiu ao Marco Antonio Rocha a tarefa de fazer uma carta me designando para agir como repórter, produzindo uma reportagem sobre movimentos turísticos na Argentina para o Brasil, em particular sobre as praias de Santa Catarina. Assim, se acontecesse alguma coisa comigo, era isso que eu estaria fazendo, um álibi, e quem providenciou isso foi o Vlado.

Como foi a prisão e o que testemunhou ali?

Dois anos depois, em 1975, praticamente, o PCB se desmonta. Se matam 8 dos 11 dirigentes do Comitê Central, um “pega para capar”, porque o projeto do presidente Geisel da “Abertura Lenta, Gradual e Segura” era abrir, mas antes queria nos matar. Se houvesse uma abertura política, e ainda na cena gente com possibilidade de ação, gente tipo a gente, que já tinha experiências desde a época do Getúlio e tudo mais, é evidente que esse pessoal sabe articular e multiplicar… era preciso eliminar esses multiplicadores, que era exatamente o papel do PCB, ser um catalisador, articulador, um multiplicador, um misturador. Vocês mesmo, que, filhos de um casal do partido, Paulo e Carmita, sabem bem o que era isso: basicamente, armar, urdir, tramar para fazer coisas que fossem elas mesmo estímulo para os outros acreditarem que era possível.

Dois anos depois da viagem à Argentina, vêm as prisões sobre o PCB, um arraso. Eu era jornalista e, portanto, era possível estabelecer relações entre mim e Vlado, etc… e isso não aconteceu absolutamente. Quando um mês depois de estar preso no DOI-Codi, eu estava em uma cela forte e ouço os gritos de uma pessoa e os interrogadores dizendo: “Quem são os jornalistas? Quem são os jornalistas?” Eu olhava aqueles dias e via que vários jornalistas tinham sido presos, imaginava que quem tivesse alguma condição teria fugido, escapado.

Quem poderia ser esse cara? Quando é a tarde para tudo, trocam as pessoas de celas e tudo mais, foi quando eles deslocaram o corpo da sala onde ele foi torturado. Eu sei como ele foi torturado, porque o time do DOI-Codi trabalhava em regime de 24 por 48 horas de folga, cada equipe trabalhava 24 horas direto. Cada equipe tinha um jeito próprio de torturar: no caso daquele dia, o torturador era um tal de “Gran Ciere”, que tinha como hábito, com um sarrafo, bater nas juntas, nas articulações da pessoa. Ele desmontava a pessoa em 5 minutos, tinha um prazer especial de torturar dando choque elétrico na tal da “Cadeira do Dragão”, mas com um requinte: pegava o capuz de lona preto que as pessoas usavam, apertava debaixo do queixo e colocava amoníaco, derramava amoníaco na trama do tecido e dava choque. A pessoa era obrigada a inalar aquele gás, que é uma coisa aterrorizante e, portanto, é possível de um cara ter um derrame cerebral. E foi assim, exatamente, que o Vlado foi morto.

Ele foi morto por acaso; ele não fazia parte da lista dos que tinham de ser eliminados, mas houve esse erro técnico de torturá-lo e ele… pronto… choque, porrada, grito, amoníaco e tudo mais, deve ter tido um derrame e morrido. Aí eles tiveram de inventar que foi suicídio.

Ora, isso aconteceu no dia 25 de outubro de 1975, sábado. Eu estava nessa cela forte, como último estágio que iriam me levar. Me disseram que iriam me levar às 3 horas da madrugada, em frente ao portão número 2 do estádio do Morumbi, onde eu iria receber um caminhão com armas que vinham da Argentina ou Uruguai. Ora, eu não tinha nada a ver com os grupos de luta armada e sabia que, longe, como era o estádio do Morumbi, eles iam alegar que eu tinha tentado fugir e fui abatido. Como fizeram com outros. Ou atropelado, como fizeram com Alexandre Vannucchi, por exemplo.

Então, eu sabia que ia ser morto aquele fim de semana. Com a morte do Vlado, tudo mudou, e uma semana depois, com a missa, um ato ecumênico — mais ainda. Então, posso dizer que estou vivo graças à morte do Vlado, portanto, pelo Vlado e por Dom Paulo Evaristo Arns, que foi outro que se empenhou por todos nós e também por mim. O que estiver ao meu alcance, que tenha a ver com esses dois, eu faço. Não preciso ninguém me pedir nada, com condição, sem condição, com recurso ou sem recurso. Portanto, um dos meus trabalhos é de animar este espaço (Praça Vladimir Herzog – SP), que não é voltado para trás, e sim voltado para frente. Este é o espaço dos sonhos e memórias do Vlado e de sua geração.

Vladimir Herzog

Você ia ser torturado ou já estava sendo torturado?

Eu tinha sido torturado, os caras já tinham me quebrado todo, eles não podiam me mostrar mais. Tinham quebrado costela, dente e uma porrada de coisas. Eu fiquei preso seis meses, um mês no DOI-Codi, um mês no DOPS, um mês nas celas do 6º distrito do Cambuci e três meses no presídio do Hipódromo. Durante esse meio ano, eu, que era repórter da Folha de São Paulo, minha família não recebeu nenhum telefonema, nenhuma visita, nem eu fui visitado, nem apareceu advogado, nada absolutamente. Não me pagaram salário nesses seis meses. Depois, quando minha filha resolveu entrar com um processo através da Anistia, descobriu que fui demitido por abandono de emprego em janeiro de 1976, três meses depois de estar preso.

Quem assinava as demissões ou forjava as mesmas no Grupo Folha de São Paulo?

Um cara chamado Piazon, mas a serviço, claro. Não faria nada disso sem comando. O dedo que aperta o gatilho, alguém deu ordens para a mão, certo? É a questão da cadeia de comando. No caso da Folha, ela tem que se explicar, até hoje ela não se explicou. Eu propus, inclusive, uma época que fui lá tirar xerox das matérias que tinha feito no Folhetim.

Depois, saí da agência e voltei a trabalhar; tive dificuldades para trabalhar, tentaram ver se eu desistia de querer trabalhar, mas não podia deixar de trabalhar. E depois, minha filha descobriu, nos livros de registro, em janeiro de 1976, quando mataram o Manuel Fiel Filho, que eu tinha sido demitido por abandono de emprego. Ora, a minha empresa não apenas não faz nada por mim, nem entra em contato com a família e demite o cara por abandono de emprego, sabendo que o cara está preso por questões políticas.

No nosso caso, ninguém poderia alegar fato criminal, tipo: “Vocês assaltaram… vocês mataram…” Não! Nós éramos uma organização de natureza política (Partido Comunista), não éramos uma organização de natureza militar. Então, cada um adota suas estratégias e responde perante a história: o que está certo ou errado. Eu acho que tem de ser com o povo; o povo é o grande protagonista. Não acho que ninguém, que se quiser a vitória, se lança à frente e fala que “nós é bom” e se expõe, e eles matam, e o povo perde gente valiosa. Então, é preciso que as pessoas saibam que a máxima velocidade do comando guerrilheiro é do homem mais lento. Que nos processos históricos, a velocidade máxima é do movimento lento, que envolve milhões de pessoas. Portanto, é um trabalho enorme também, de natureza cultural.

Você escapou de uma armação para justificar seu assassinato pelos órgãos de repressão?

Disseram que eu ia receber um caminhão de armas. Eles falaram isso: “Nós vamos te levar às 3 horas da manhã na frente do portão 2 do Morumbi, onde soubemos que você vai receber um caminhão de armas dos Motoneros ou Tupamaros.” Eu dizia que aquilo era uma loucura, que eles estavam inventando uma coisa que não tinha nada a ver! Eles reafirmavam essa história. Eu já sabia o que era; eles arrastavam as pessoas para onde fossem, matavam, e tudo ficava por isso mesmo.

Acontece que, quando mataram o Vlado, ele não era um garoto como eu e os outros. Ele não era um qualquer. Ele era o diretor de Jornalismo da TV Cultura, a TV pública do estado. O jornalista que, ao longo de dez anos, respondeu pela editoria de Educação e Cultura da principal revista da área, que na época era a Visão. Ele tinha feito cursos na BBC, de Londres, era desenhista e chargista, cineasta. Quando mataram o Vlado, deu-se essa reação que, formalmente, se mostraria no dia 31 de outubro de 1975, com a catedral da Sé cheia e vazando pelo ladrão. A partir daí, dizem os historiadores, é o momento em que a história se divide; aí teremos dez longos anos até acabar a ditadura.

 Como foi seu processo de soltura e liberdade?

Eu fiquei preso seis meses, uma parte por prisão preventiva. Relaxou-se a prisão preventiva, aí você fica esperando julgamento. Depois, fui absolvido, tanto na primeira quanto na segunda instância na Justiça Militar. Então, eu não devo nada a ninguém; fui absolvido. Alguém tem de pedir desculpas, o governo tem de pedir, a Folha de São Paulo tem de pedir. Não é por mim, é um gesto de reconhecer que foram cúmplices da morte. Eu não quero mais morte!

Na apresentação do livro “A serviço da repressão…”, você, ao olhar os “cabeças brancas” da plateia, afirma: “Nós ainda vamos dar trabalho para esses caras”… Comente, por favor.

É porque a expectativa de vida aumentou na população brasileira. Quando eu nasci, em 1949, a esperança de vida média era de 42 anos; agora, está em 77 anos. Então, você olha esses “cabeças brancas” de hoje e não pense que eles já desistiram. É como as velhinhas da Praça de Maio, em Buenos Aires: nós temos que aprender a lutar como os argentinos… 4×1.

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