Pesquisador do Instituto René Rachou (Fiocruz Minas), o engenheiro Léo Heller é ex-relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para Água e Saneamento e autor de publicações que discutem a água sob diversas perspectivas: saúde coletiva, políticas públicas e direitos humanos.
Nesta entrevista, o estudioso defende que a água e o saneamento são direitos fundamentais que têm sido violados em regiões vulnerabilizadas no país. Ele também aponta as contradições que se descortinam a partir da privatização do abastecimento de água e coleta de esgoto em diferentes estados brasileiros. Segundo ele, governos têm usado a falsa justificativa de universalizar o serviço mais rapidamente e captar recursos para o Estado para entregar o controle da água para investidores internacionais – atrelando esse recurso essencial a interesses do mercado.
“Não há evidências de que a universalização ocorra mais efetivamente em modelos privados do que em modelos públicos de prestação de serviços. Ao contrário, como muitas vezes as empresas privadas buscam maximizar seus lucros, há uma tendência em serem relutantes em colocar serviços em locais onde vivem populações com mais baixa capacidade de pagamento, como em zonas rurais e cidades de menor porte, mas sobretudo em vilas e favelas, onde há também complexidades urbanísticas para a implementação dos serviços”, afirma o pesquisador.
Como o acesso à água potável e limpa como direito humano essencial pode ser comprometido quando o Estado perde o controle do serviço de saneamento e distribuição?
Léo Heller: É importante destacar que tanto o acesso à água quanto o aceso ao saneamento (ou esgotamento sanitário) são considerados direitos humanos. Resolução das Nações Unidas de 2010 reconheceu esses direitos, com amplo apoio dos países-membros, inclusive do Brasil.
O marco dos direitos humanos define que são os governos os responsáveis por cumprirem suas obrigações de direitos humanos, sob o risco de violar essas obrigações. Portanto, no campo da água e do saneamento, a presença do Estado é essencial. Esses serviços, por serem monopolizados (há somente um prestador em cada localidade) requerem forte atuação do Estado para regular, fiscalizar e controlar a realização dos direitos humanos. Quando esses serviços são deixados inteiramente sob responsabilidade dos mercados, há sérios riscos de violação de direitos.
O que a legislação brasileira garante à população no que diz respeito ao acesso à água potável?
A legislação brasileira ainda não reconhece água e saneamento como direitos humanos. Existem duas PECs tramitando, ainda sem decisão final. A legislação federal relativa ao saneamento básico tem alguns alinhamentos com o marco dos direitos humanos, mas não é explícita em relação a eles e tampouco abarca esse marco de forma abrangente, apenas em alguns tópicos selecionados. Alguns avanços da legislação dizem respeito à meta de universalização do acesso e alguma atenção a populações que vivem em situação de vulnerabilidade. No entanto, é ambígua sobre as formas para se atingir isto.
Quais são os principais modelos de privatização da água que têm sido operados no Brasil?
Têm sido principalmente modelos de concessão, nos quais os municípios aceitam delegar a prestação de serviços para empresas privadas por longos períodos, entre 30 e 35 anos. Tem havido também discussões acerca da “venda” de companhias estaduais, mas, ainda assim, os novos proprietários atuariam nos municípios, que são os titulares de serviços, herdando as concessões já operadas por essas companhias estaduais.
Alguns dos defensores da privatização de companhias de tratamento de distribuição da água alegam que essa é uma forma de universalizar o serviço mais rapidamente. Nos casos de empresas já privatizadas essa lógica foi comprovada?
Não há evidências de que a universalização ocorra mais efetivamente em modelos privados do que em modelos públicos de prestação de serviços. Ao contrário, como muitas vezes as empresas privadas buscam maximizar seus lucros, há uma tendência em serem relutantes em colocar serviços em locais onde vivem populações com mais baixa capacidade de pagamento, como em zonas rurais e cidades de menor porte, mas sobretudo em vilas e favelas, onde há também complexidades urbanísticas para a implementação dos serviços.
Quais os interesses em jogo com o marco legal aprovado no Senado em 2020, sobre a contratação de empresas de saneamento?
Nitidamente, é uma lei privatista, que modela o setor para uma ampliação da privatização em larga escala. A concepção da lei é de regionalizar os estados, formando grupos de municípios, e transferir a prestação dos serviços em cada região para empresas privadas, colocando de lado as companhias estaduais e substituindo serviços municipais. A aprovação da lei foi precedida pela ação de poderosos lobbies das empresas privadas, influenciando o governo federal e parlamentares e contando com toda a imprensa dominante como seu braço midiático. Os grandes veículos tradicionais de imprensa propalaram a reforma promovida pela lei como a única saída para superação dos déficits em saneamento, sem dar voz a opiniões dissonantes.
Quais foram as principais consequências do processo de concessão da gestão da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae) para os municípios e a população que eram atendidos pela empresa no Rio de Janeiro?
Esse é um processo ainda em andamento e difícil de avaliar como se desenvolverá até o final. De qualquer forma, examinando todo o processo de licitação dos lotes no estado, existem preocupações quanto a, por exemplo, aumentos desproporcionais de tarifas, baixa aplicação da tarifa social, insuficientes investimentos em vilas e favelas, não reconhecimento do direito de acesso aos serviços em assentamentos informais, baixa atenção a cidades de menor porte e menos rentáveis, além da regulação de baixa qualidade e capturada pelos prestadores de serviços.
Existe algum estudo que indica a porcentagem de aumento de tarifas nos casos de privatização das companhias de distribuição?
É muito variável, mas nossos estudos vêm constatando tarifas maiores quando a prestação de serviços é privada. De qualquer forma, existem muitos fatores que influenciam as tarifas após início da prestação privada, como as estruturas de tarifas anteriores, os reajustes e revisões de tarifas previstos em contrato e o papel das agências reguladoras.
Como os tratados estabelecidos pela ONU têm contribuído para o desenvolvimento progressivo dos direitos humanos no que diz respeito ao acesso à água? Quais os desafios para o desenvolvimento de pactos mais efetivos?
A influência dos tratados internacionais sobre as políticas nacionais muitas vezes leva algum tempo para se fazer sentir. Existe uma influência no plano simbólico: a partir do reconhecimento da água e saneamento como direitos humanos, mais e mais países e atores sociais começam a utilizar a terminologia, se apropriar de seu conteúdo e alinhar suas ações a esse marco. Outra influência é mais concreta: muitos países alteraram suas constituições para reconhecer esses direitos. As mudanças constitucionais têm efeito importante, porque vinculam o Judiciário em suas decisões e pautam políticas públicas. Ainda precisaremos de mais tempo para ver os direitos humanos à água e ao saneamento se concretizarem plenamente e dependerá de que todos os atores da sociedade, com capacidade de influência sobre o setor, tenham esse marco como a principal orientação de suas ações.
Como o Brasil tem se posicionado no movimento internacional de defesa do direito humano à água?
Depende do governo federal da época e da sua política de relações exteriores. Os governos Lula e Dilma foram proativos e apoiaram esses direitos, sem nenhuma ambiguidade. As políticas no governo Temer foram menos assertivas. E, como sabemos, direitos humanos foram um conceito rejeitado no governo Bolsonaro, cuja política internacional foi absolutamente desastrosa, sobretudo nos primeiros anos, com o ministro Ernesto Araújo.
Na sua opinião, quais os principais caminhos para se democratizar e universalizar o direito à água potável no Brasil, se levarmos em consideração as grandes dimensões do país e a quantidade de destinos ainda sem estrutura básica de canalização e saneamento?
Essa complexidade, que você aponta com muita precisão, realmente é um desafio para se assegurar a universalização em todos os contextos. Outro fator que torna desafiantes esses caminhos é a estrutura federativa brasileira, em que o município é o titular dos serviços, os estados não têm em geral papel muito claro e a União tem a responsabilidade de formular e coordenar a política nacional e de alocar recursos financeiros. Devido a essa complexidade, uma política nacional clara, que parta de um diagnóstico preciso das carências e dos gargalos do setor, é essencial. Essa política necessita ter como pano de fundo um planejamento estratégico, que está dado com o Plansab, mas que não tem sido observado.
É necessário ainda haver muita clareza sobre como e para quem alocar fundos públicos, fugindo da lógica imediatista e pontual das emendas parlamentares. É importante ainda o fortalecimento dos prestadores locais e garantir independência aos reguladores. Em síntese, é necessário um conjunto articulado de medidas, que foram muito bem apontadas pelo Plansab. Sabemos da receita, mas ainda não temos quem as implemente de forma completa e integrada. Existe grande expectativa de que a nova Secretaria Nacional de Saneamento, no âmbito do Ministério das Cidades, cumpra um papel central nesses aspectos.
Qual o papel das organizações da sociedade civil e movimentos populares nesse cenário?
A sociedade civil tem papel central. Não há política de saneamento básico efetiva sem participação social. A sociedade é quem deve pautar as decisões de políticas públicas em suas várias escalas, da local à internacional, pois ela é quem sente os efeitos das carências em água e saneamento. É a sociedade civil também que tem cumprido um papel de resistência contra políticas regressivas, como a ampla privatização dos serviços promovida e estimulada pelo governo anterior.
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