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Por Gabriel Gomes*

O Ciep 201 Aarão Steinbruch, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, é referência em educação na região, com aprovados nas universidades públicas pelo Sistema de Seleção Unificada, o Sisu, e em outros vestibulares, como o da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Neste ano, 17 estudantes da escola foram aprovados em cursos de ensino superior até o momento.

O núcleo no “Brizolão”, como são chamados os Cieps, é parte do projeto “Africanidades”, idealizado pelo professor de história Julio Cesar Araujo em 2003, baseado em uma prática pedagógica antirracista. O projeto discute temas como o genocídio da juventude negra, a Lei de Cotas, o cabelo crespo e o contexto de violência da Baixada Fluminense.

Professor Julio Cesar Araujo, idealizador do projeto. Foto: Reprodução/ Redes Sociais.

A ideia do projeto surgiu quando o professor Julio se espantou com a naturalidade da violência entre os alunos. Muitos brincavam com termos sobre a violência, com alusões, inclusive, à ditadura militar brasileira.

“Comecei a trabalhar com minhas turmas   para os alunos entenderem o que é ser negro, o que é esse território. No início houve uma resistência muito grande, eu não conseguia entender como essa violência, que estava tão naturalizada e que parecia algo normal, se encaixava”, relata o professor Julio Cesar.

Com o tempo, após algumas resistências de professores da instituição à época, o projeto ganhou notoriedade, e se consolidou com a chegada de novos profissionais ao Ciep 201. Hoje, como parte do Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, o “Africanidades” realiza rodas de conversa, que discutem vários temas ao longo do ano e oferece oficinas aos alunos, como as de grafite, desenho, rima e tranças.

Rodas de conversa do projeto em 2023. Foto: Reprodução

Outro eixo do projeto é baseado na parte visual da escola, que chama a atenção de quem a visita por diversos painéis e grafites com referência a intelectuais negros. Conceição Evaristo, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Emicida, Solano Trindade, Carolina Maria de Jesus e Mano Brown são alguns dos homenageados.

“A gente tem no grafite uma ferramenta muito importante de construção do conhecimento”, explica o professor de história Cristiano Azeredo, um dos coordenadores do projeto.

Foto: Arquivo Pessoal/ Cristiano Azeredo

Aprovados

Neste ano, 17 alunos do Ciep 201, que participaram do “Africanidades”, foram aprovados em universidades públicas até o momento. Desses, dois foram aprovados em mais de uma universidade.

A estudante Yasmin Rosário, de 17 anos, por exemplo, foi aprovada em primeiro lugar para o curso de Arquitetura da Uerj. A aluna relata que o projeto a ajudou a se entender melhor como uma mulher negra e a permitiu sonhar com a entrada na universidade pública.

“No meu período de vestibulanda, eu entendi que a universidade também poderia ser o meu lugar. Eu sempre quis fazer faculdade, só não sabia como ingressar, não sabia nem o que era Enem, o que era Uerj… No ‘Africanidades’, eu pude ver que não sou branca, até pelas coisas que já sofri e ainda sofro pelo meu cabelo crespo”, conta Yasmin.

Aprovada em primeiro lugar no curso de Artes Visuais na UFRJ, a estudante Vitória Lima também é oriunda do projeto “Africanidades”. A aluna Ana Paula Tacuma, do mesmo projeto, também conquistou o primeiro lugar no curso de História na UERJ/ FEBEF.

“O projeto me ajudou muito, pois me fez entender que nós alunos também poderíamos entrar na universidade, mesmo quando muitas pessoas disseram para a gente que não podíamos estar lá”, relatou Vitória Lima.

Referências na Educação

Um dos objetivos do projeto é criar referências para os estudantes do Ciep 201 Aarão Steinbruch. Além dos líderes e intelectuais negros expostos nas paredes da escola, os ex-estudantes aprovados no vestibular também se tornam exemplos para os atuais alunos, como forma de mostrar a possibilidade de acesso ao ensino superior.

Foto: Arquivo Pessoal/ Cristiano Azeredo

No corredor, os professores montaram um painel com a foto dos aprovados em cursos de ensino superior que foram alunos do projeto. Para os novos estudantes, ter a imagem exposta no painel torna-se um objetivo e os estudantes aprovados, referências a serem seguidas.

“Quando eu entrei no Ciep 201, uma das primeiras coisas que eu vi foi uma mural enorme com várias fotos de aprovados e o melhor, eram pessoas bem parecidas comigo. Não era o que via na televisão, com só pessoas brancas passando para a universidade. No mural, tinham meninos e meninas passando para Engenharia, Odontologia e eu ficava sonhando em ver minha foto no mural”, disse a estudante Yasmin do Rosário.

Foto: Arquivo Pessoal/ Cristiano Azeredo

“A gente coloca aqui na escola vários intelectuais negros para os alunos se inspirarem, mas essa galera está querendo se inspirar nelas mesmas. Elas pegam os alunos mais antigos e colocam como referência e querem ser iguais”, comentou o professor Cristiano de Azeredo.

Diante disso, uma das rodas de conversa de maior sucesso do projeto é chamada de “Cota não é esmola”, nome sugerido pela aluna Yasmin do Rosário, em referência à música de Bia Ferreira. Nessa roda, são explicadas as regras da Lei de Cotas, também com a participação de ex-alunos.

O projeto passa aos estudantes informações sobre como acessar (Edital, Inscrição) e, principalmente, se manter na universidade. Os professores relatam também que, em muitos momentos, se juntam para pagar a taxa de inscrição de alguns alunos nas provas dos vestibulares.

“Durante muito tempo existiu uma luta de as pessoas dizerem que essa atividade não era necessária porque essas informações estão aí, estão disponíveis na internet. Mas, essas informações não estão na nossa realidade. Essa informação é uma parte fundamental para esses jovens”, ressaltou o professor Cristiano.

Roda de conversa ‘Cota não é esmola’, em 2023. Foto: Arquivo Pessoal/ Cristiano Azeredo

Baixada Fluminense

O Ciep 201 Aarão Steinbruch fica localizado no bairro São Bento, na cidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. A região é marcada por baixos índices sócio-econômicos e pela violência. Nesse contexto, estão inseridos os estudantes do projeto “Africanidades”.

“É uma escola pública, a maioria dos alunos são negros, de Duque de Caxias, com um extrato de violência muito grande, de grupos de exterminio, na época [da criação do projeto], e hoje, grupos de milícia”, destacou o professor Julio Cesar.

A partir do conhecimento e do letramento oferecido pelo projeto, muitos alunos passam a ser os primeiros da família a acessarem o ensino superior. A situação, no entanto, acaba, muitas vezes, criando um dilema no círculo familiar.

“Esses alunos são os primeiros a ingressar na universidade, vão criar ‘problemas’ nas suas casas porque, para os pais, quando eles terminam o ensino médio, já precisam entrar no mercado de trabalho para ajudar em casa. Só que esses alunos agora querem outra realização, outra perspectiva, querem um outro sonho. Já os pais, por conta da necessidade, querem que os filhos trabalhem. Como é que fica?”, questionou o professor Julio Cesar.

Registro da aula de campo em São Paulo, em 2021. Na imagem, o prof. Julio — idealizador do projeto — conta a história de João Candido, o Almirante Negro. Foto: Arquivo Pessoal/ Yasmin do Rosário

“Quando esse jovem começa a entender a política pedagógica da escola, ele começa também a questionar o que ele aprendeu lá fora. Então, dá um ‘bug’ na cabeça dele. Esse jovem, em dado momento, tem que fazer uma opção: ou ele aposta que é possível realizar o grande sonho dele, se formar, chegar à universidade ou vai seguir esses valores, que são muito fortes. A gente tem casos de jovens que entram na universidade e a família rompe com eles”, completa o professor Julio.

Foto: Arquivo Pessoal/ Cristiano Azeredo

*Gabriel Gomes é estagiário, sob supervisão de Chico Alves

 

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