Por Cláudia Collucci
(Folhapress) — Em artigo pulicado em revista científica internacional, responsáveis por nove serviços de aborto legal em todo o Brasil se opõem a propostas do Legislativo de restringir as interrupções de gravidez já previstas em lei e as classificam de “aberração legal”.
No último dia 27, a CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara aprovou a admissibilidade de uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que coloca a “inviolabilidade da vida desde a concepção” no texto constitucional, o que, na prática, acaba com todas as previsões de aborto legal no país.
Outra proposta, o projeto de lei 1904/2024, busca proibir abortos realizados após 22 semanas de gestação e impõe medidas severas, incluindo até 20 anos de prisão para mulheres que procurarem aborto após estupro.

Manifestação contra o projeto de lei 1904/2024 (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)
No artigo, publicado na revista da Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia), os autores argumentam que as propostas entram em conflito com diretrizes internacionais, representam retrocesso nos direitos sexuais e reprodutivos e põem em perigo o bem-estar físico e mental de mulheres e meninas.
O Brasil é signatário de vários acordos internacionais, entre eles o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e a Convenção sobre os Direitos da Criança, que obrigam os Estados-membros a proteger os indivíduos dos riscos físicos e mentais associados aos abortos inseguros.
Eles também exigem esforços para reduzir a mortalidade materna, que inclui a prevenção de práticas de aborto inseguro entre meninas e adolescentes.
O artigo lembra que o quadro legislativo brasileiro sobre o aborto já é restritivo, permitindo o procedimento apenas em circunstâncias específicas: gravidezes resultantes de violência sexual, situações que representem risco para a vida da mãe, ou casos de anencefalia.
Na América Latina, países como a Argentina e o Uruguai têm legislações menos restritivas, com o aborto sendo permitido em qualquer circunstância antes de 14 semanas.
A OMS (Organização Mundial da Saúde) não especifica um período gestacional limite de idade para procedimentos de aborto, e a legislação brasileira vigente também não estabelece nenhum limite baseado na idade gestacional.
Segundo os autores, contrariamente aos supostos objetivos de proteger a vida, as legislações propostas agravam as vulnerabilidades existentes e afetam desproporcionalmente as mulheres que mais necessitam de apoio médico e social.
“Efetivamente revogam os direitos das mulheres, adolescentes e meninas vítimas de violência sexual, submetendo-as a mais violência cruel.”
No Brasil, o acesso a serviços de aborto seguro e oportuno é prejudicado por barreiras sistêmicas no sistema de saúde, mesmo naquelas situações em que as mulheres têm o direito assegurado por lei.
“Essa realidade afeta desproporcionalmente os grupos marginalizados, como mulheres negras, empobrecidas e muito jovens, muitas das quais são vítimas de abuso crônico e intrafamiliar.”
As mais afetadas pela proposta
Os autores também pontuam que as mulheres e adolescentes que procuram o aborto em idades gestacionais mais avançadas, em geral, tiveram negado o acesso anterior aos cuidados. Apenas 3,6% dos municípios brasileiros oferecem serviços de aborto legal.
Eles afirmam que essas mulheres são as que mais necessitam de apoio e proteção social devido à natureza violenta de suas gravidezes e enfrentam riscos sociais e clínicos significativos se forem forçadas a continuar uma gravidez indesejada. “Esses riscos incluem potenciais danos psicológicos e físicos e, em casos extremos, morte prematura.”
De acordo com o artigo, a descoberta tardia de gravidezes resultantes de abuso sexual é comum entre meninas com menos de 14 anos, que muitas vezes não têm conhecimento sobre sua saúde reprodutiva e os primeiros sinais de gravidez.
“A ignorância é agravada pelo fato de essas jovens vítimas frequentemente sofrerem abusos por parte de seus cuidadores e encontrarem obstáculos nos serviços de saúde, como desinformação e falta de conscientização sobre os direitos sexuais e reprodutivos entre os profissionais de saúde.”
Todas essas barreiras dificultam o acesso aos serviços de aborto seguro em fases iniciais da gestação. “Quando elas eventualmente procuram ajuda, muitas vezes também precisam de escapar a ciclos de violência intrafamiliar e doméstica, restringindo ainda mais a sua capacidade de procurar assistência oportuna.”
Assinam o artigo médicos ligados ao serviços de aborto legal da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal do Paraná, USP-Ribeirão Preto, Universidade de Fortaleza, Maternidade Escola de Vila Nova Cachoeirinha, Universidade Federal da Bahia, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública.
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