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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

Quatro anos sem Miguel e sem justiça

Uma queda, muitas perguntas, nenhuma resposta
06/06/2024 | 16h00

“A gente não supera a dor pela morte de um amor.
Aprende a conviver com ela”.

Assim dizem… mas como se aprende a conviver com a morte do amor quando este é um filho? E mais: Filho único de apenas cinco anos, assassinado pela negligência de uma adulta que fazia as unhas enquanto você estava a serviço dela? Filho falecido não por fatalidade, mas pela crueldade de estar ainda na primeira infância, mas não ser enxergado como criança?

Como conviver com a dor de um processo que se arrasta por quatro longuíssimos anos, apesar de todas as provas, evidências, circunstâncias, notícias…? Como conviver com a dor da justiça seletiva de uma país excludente, que não hesitaria meio segundo em encarcerar a empregada caso fosse o filho da patroa a cair do 10º andar?

Não há convivência com dor nenhuma. Há um dilaceramento por ela e um desejo ardente por justiça que vai se transmutando em desejo de vingança, pois quando a primeira falha é a segunda que assume o comando.

Este nem é o caso de Mirtes Renata, que no último dia 2 de junho viu completarem-se quatro anos desde o dia em que seu filho, o pequeno Miguel Otávio Santana da Silva, voou de uma altura de 35 metros para agonizar no playground de edifício de luxo. Uma agonia que se perpetua no coração de sua mãe e de todas as pessoas que enxergaram tudo o que este crime sinaliza.

O Brasil possui, oficialmente, entre 5 e 6 milhões de pessoas em trabalhos domésticos. Este número, sabemos, é bem superior, pois a informalidade não deixa mensurar com exatidão um serviço tão naturalizado na cultura brasileira, que há quem não veja responsabilidade na ex-patroa de Mirtes, Sarí Mariana Costa Gaspar Corte Real.

Mirtes, aos olhos da “boa sociedade brasileira”, deveria dar conta de ganhar pouco, morar longe, não ter onde deixar o filho e, para além dos serviços da casa, passear com o cachorro da patroa. Sarí (e não só ela), além do nome pomposo, tem toda a tecnologia da conhecida “sinhá”.

Em termos práticos, as decisões mais recentes foram vergonhosamente desfavoráveis. Há algumas semanas a Justiça do Trabalho de Pernambuco reduziu de dois milhões para um a indenização que deve ser paga à família de Miguel por Sarí e o marido, Sérgio Hacker, o ex prefeito do município de Tamandaré. Em novembro de 2023 o Tribunal de Justiça de Pernambuco diminuiu a pena de Sarí para sete anos de prisão. Ainda cabe recurso.

Hoje Mirtes cursa a faculdade de Direito e trabalha como assessora parlamentar, além de participar de movimentos contra o racismo por enxergar as digitais deste algoz da sociedade brasileira tanto na morte, quanto na demora por justiça. Ela hoje faz parte da ANEPE — Articulação negra de Pernambuco -, ligada à Coalizão Negra por Direitos.

Obviamente que, mesmo depois de uma tragédia destas proporções, há quem a acuse de estar atrás de dinheiro e sobre isso foi categórica em entrevista recente à Agência Brasil. Seu foco principal é o processo penal e sobre a indenização: “Seja qualquer valor que seja pra eles pagarem, que paguem. Porque infelizmente essas pessoas só sentem o peso dos seus atos quanto mexe no bolso. (…) Essa é uma luta por direitos. Nem observo muito esses comentários porque estou preservando minha saúde mental”.

Até o momento, o Estado deu apenas uma resposta objetiva ao caso, que foi a aprovação da Lei Miguel, em agosto de 2020, que determina que crianças até 12 anos não podem utilizar elevadores desacompanhadas de adultos.

Enquanto luta com um sistema assentado em bases escravocratas, Mirtes sangra em praça pública. Não há uma data festiva, um dia em que não traga a lembrança do filho.

A ativista negra norte-americana Soujourney Truth, há dois séculos agulhou uma sociedade que enxergava apenas a cor branca como detentora de humanidade com a pergunta: “E não sou eu uma mulher?”. Mirtes e tantas outras mulheres negras podem complementar com “E não sou eu também uma mãe?”

A morte de Miguel todo dia atira na cara do Brasil quem ele realmente é.

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