ICL Notícias
Chico Alves

Jornalista, por duas vezes ganhou o Prêmio Embratel de Jornalismo e foi menção honrosa no Prêmio Vladimir Herzog. Foi editor-assistente na revista ISTOÉ e editor-chefe do jornal O DIA. É co-autor do livro 'Paraíso Armado', sobre a crise na Segurança Pública no Rio, em parceria com Aziz Filho. Atualmente é editor-chefe do site ICL Notícias.

Que em 2024 os jornalões tenham editoriais menos tenebrosos

Volta e meia um desses textos vira destaque negativo nas redes sociais
29/12/2023 | 10h51

Chegamos à reta final de 2023 e, como em todo fim de ano, somos incentivados a exercitar o pensamento mágico, impelidos a imaginar algo de muito bom que não aconteceu nos últimos 365 dias, mas que, por alguma força sobrenatural, queremos ver materializado nos próximos 365.

Não costumo entrar nessa onda, mas nos últimos dias me peguei especulando sobre alguns desejos que tornariam a vida mais agradável no ano novo. Ao contrário do que parecia para mim, não é algo simples de escolher.

Torcer para que se instaure a paz mundial? Meta ousada demais até mesmo para forças do além. Melhor baixar a bola.

Milhões da Mega-Sena? Nem adianta sonhar com isso, nunca jogo.

Vasco campeão brasileiro? Mudança radical demais para esse time que me fez sofrer tanto nos últimos meses.

Depois de um tempo pensando e eliminando possibilidades, cheguei a um desejo que melhoraria bastante a minha qualidade de vida e a de muitos brasileiros: que bom seria se os editorialistas da grande imprensa passassem a ter um pouco de juízo em 2024.

Notem: não precisa muito juízo, só um pouco já seria um upgrade e tanto.

É certo que o reacionarismo dos jornalões sempre marcou os editoriais. Confesso, porém, a ingenuidade: pensei que depois da ameaça autoritária de Jair Bolsonaro e seus cúmplices a turma passaria a maneirar um pouco mais. Em vários momentos de 2023, os editorialistas mostraram que eu estava redondamente enganado.

Não faltam exemplos. Há pouco mais de uma semana, O Globo publicou um editorial com o absurdo título “Justiça do Rio acerta ao permitir apreensão de menores sem flagrante”. O próprio texto trazia o argumento-chave para contestar a proposição. O Ministério Público provou que as apreensões desses menores, quase todos negros, são resultado de racismo por parte da polícia: de 89 casos analisados, em apenas um a apreensão se justificou. Se isso não foi o suficiente para demover o editorialista do Globo de publicar aquilo, o que seria?

Na Folha houve menos sobressaltos, mas argumentações estapafúrdias para defender teses indefensáveis apareceram às vezes. Como no dia 28 de agosto, no editorial sob título “Não foi golpe”, em que o subtítulo já mostrava ao leitor o terreno pantanoso em que se metia ao ler aquele texto: “Erros na economia e na política, não pedaladas, levaram ao impeachment de Dilma”. Isso mesmo: o jornal avalizou a tese ilegal de que a execução de uma política econômica considerada equivocada pode ser motivo para apear um presidente do poder. O fato de essa possibilidade não estar na legislação parece ser apenas um detalhe para a Folha. De quebra, confirmou com todas as letras o contrário do que alardeava no começo: foi golpe.

E tem o Estadão, com seus editoriais antipetistas que poderiam ser considerados caricatos, se não representassem o pensamento torto de parte da elite brasileira. Há uma lista enorme, mas fiquemos somente com dois dos mais recentes.

No dia 26 de dezembro, o editorialista tratou da campanha do governo que tem o objetivo declarado de unir o país, sob o título “O Brasil é um só povo”. Segundo a análise sempre enviesada do Estadão, na verdade “o que os petistas querem é unificar o País em torno de Lula”. Reclama que “’pacificar’ o Brasil deixou de ser um objetivo cívico para se tornar mote eleitoral petista”. Ou seja: na cabeça confusa do opinador do jornalão, pedir paz é pura malandragem de Lula para conseguir votos.

Curiosamente, no dia seguinte, o editorialista ciclotímico reclama da falta de pacificação.

Sob o título “Estado de eleição permanente”, o jornal critica a divisão do Brasil entre os polos do “lulopetismo” e do bolsonarismo, e lamenta as consequências disso: “cisão, dissolução de grupos, abalo ou ruptura de amizades e relações, interdição de debates públicos e privados, demonização do adversário”. Na busca das causas desse quadro horroroso, equipara a responsabilidade de Lula à de Bolsonaro na disseminação do ódio – e pesa mais a mão sobre o petista, claro.

Nem sequer uma palavra sobre o papel que o próprio Estadão exerceu e exerce na perseguição a um partido político, o PT, inclusive com o apoio entusiasmado à caça às bruxas da Lava Jato, que levou Lula a ficar 580 dias preso sem que houvesse provas para tal. Isso sim é “demonização do adversário”.

A principal crítica aqui, claro, não vai para aqueles que escrevem os textos, mas para os donos de jornal que emitem as opiniões e delegam a seus funcionários a tarefa de sustentá-las com palavras empoladas, que os façam parecer inteligentes.

Pobres sujeitos, os editorialistas.

Não sou leitor assíduo de editoriais – nem eu preciso deles e nem eles de mim. Mas volta e meia um desses textos vira destaque negativo nas redes sociais e quando menos espero estou lendo pérolas de argumentação.

Não é experiência agradável e tem acontecido com indesejada frequência.

Portanto, na impossibilidade de conseguir a paz mundial, os milhões da Mega-Sena ou um título brasileiro para o Vasco, se 2024 tiver editoriais menos tenebrosos já vou me dar por satisfeito.

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