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Questão de princípio

A anistia não é boa solução, mas tampouco é aceitável fazer julgamentos usando métodos de extorsão de confissões
24/02/2025 | 11h36
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Os fanáticos me perdoem, mas decência é fundamental. A participação do ministro Alexandre de Moraes e a forma como este se comportou na inquirição de Mauro Cid retira legitimidade à delação premiada. Ela foi obtida por meios ilegítimos de ameaça e de coação — sobre o visado e sobre a sua família, o pai, a esposa e a filha. Apresentar a sessão de interrogatório como um ato de lealdade processual é puro cinismo: o que ali se passou foi a extorsão de uma delação que fosse do agrado das autoridades penais e que estivesse de acordo com as suas suspeitas.

Se a esquerda criticou estes métodos quando da Lava-Jato, e em particular de Lula da Silva, que razão encontra agora para não os condenar?  Este duplo critério é absolutamente inadmissível — as garantias constitucionais e o devido processo legal não estão sujeitos á contingência política. São um absoluto e valem em qualquer circunstância. E valem para todos. Digo mais: o dever de denunciar os abusos é maior quando se trata de um adversário político (e mais ainda quando se trata de alguém que nos causa a maior aversão política). A obrigação moral de denunciar o arbítrio judicial aumenta com a distância política — é maior com os oponentes, menor com os aliados. Quem já passou por isso sabe exatamente do que estou a falar.

Já escrevi nesta coluna as palavras mais duras sobre o golpe de 8 janeiro de 2022. Já expliquei também as razões pelas quais não me parece que a anistia seja a boa solução, na medida em que essa solução política tornaria todo o país cúmplice daquela ação golpista. Ignorar criminalmente que aconteceu não seria uma política neutra, mas uma política ativa que tornaria o atual Estado brasileiro e os seus tribunais moralmente responsáveis pelas políticas antidemocráticas que conduziram a esses atos de violência. Não, a anistia não é boa solução.

Mauro Cid (Foto: Lula Marques/ Agência Brasil)

Mas tampouco é aceitável fazer julgamentos sobre acontecimentos históricos graves usando métodos de extorsão de confissões. Primeiro problema: se o juiz Alexandre de Morais vai, no final, julgar o caso, com que direito e com que legitimidade se apresenta num interrogatório policial? O sistema penal brasileiro é acusatório, não é inquisitorial, o que pressupõe uma completa separação entre quem acusa e quem julga — e esse, todos estamos lembrados, foi o principal problema da Lava-Jato: o conluio evidente entre o juiz Sérgio Moro e o Ministério Público. Segundo problema: com que direito se invoca o que pode vir a acontecer à família mais próxima num interrogatório policial? Que eu saiba a Polícia Federal e o Ministério Público têm o direito de não acreditar na versão contada, têm o direito de a considerar não compatível com outros fatos apurados, têm o direito de a anular. Mas não têm o direito de ameaçar o visado por forma a que este altere a sua versão dos fatos. Não, não têm esse direito.

A delação de Mauro Cid está deslegitimada — pelo direito penal e pela decência política. Pela minha parte, ao ver o vídeo publicado, veio-me imediatamente ao espírito as piores cenas da Lava-Jato. No fundo, o instituto penal da delação premiada carrega consigo a tentação do abuso e da manipulação. O método sempre me desagradou intuitivamente e este novo episódio só vem revelar, mais uma vez, como ela pode, tão facilmente e tao frequentemente, corromper o direito penal democrático.  Seja como for, o interrogatório de Mauro Cid não tem nenhuma credibilidade e aquela delação é agora uma árvore envenenada pela vergonhosa ameaça de perseguição à sua família. Espero que o futuro julgamento ponha de lado as provas recolhidas desta forma e use apenas as outras, aquelas que foram adquiridas legitimamente. Dito isto, a obrigação comigo próprio está cumprida. Agora estou melhor.

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