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Eliana Alves Cruz

Eliana Alves Cruz é carioca, escritora, roteirista e jornalista. Foi a ganhadora do Prêmio Jabuti 2022 na categoria Contos, pelo livro “A vestida”. É autora dos também premiados romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo; Nada digo de ti, que em ti não veja; e Solitária. Tem ainda dois livros infantis e está em cerca de 20 antologias. Foi colunista do The Intercept Brasil, UOL e atuou como chefe de imprensa da Confederação Brasileira de Natação.

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A casa grande 2.1

Convergências dos casos do entregador baleado e da censura de livros
08/03/2024 | 09h00

Muita gente no Brasil insiste em colocar no terreno da coincidência e dos casos isolados o que quem olha a história do país com honestidade e cuidado enxerga como projeto de nação arquitetado para o longuíssimo prazo. Tudo tem conexão e não se trata de “teoria da conspiração”. É metodologia testada e aprovada por séculos de colonização. É a tecnologia da exclusão devidamente atualizada. É a casa grande dois ponto um.

Esta semana tivemos mais dois episódios para a enciclopédia de exemplos neste campo. O entregador de comida baleado pelo cliente e a censura ao livro “O avesso da pele”, do escritor Jeferson Tenório.

Não pode descer para pegar a comida, mas pode descer para agredir

Como dizem no jargão do futebol, a regra é clara. Chegou a comida no edifício, o cliente desce, fornece o código, pega o seu ranguinho e sobe para matar sua fome. Ponto final? Não.  Como boa sociedade acostumada a ter amas, mucamas, andas (os homens que carregavam cadeirinhas com pessoas pelas ruas), criadas e criados, entrar em um elevador e ir na direção do entregador pode parecer humilhante demais, trabalho demais. É preciso que chegue nas mãos sem esforço, no máximo conforto possível. “Eu pago, então devo ser servido e não servir”.

E assim temos um farto noticiário de violências racistas e classistas contra profissionais que estão num perigoso, exaustivo e mal remunerado “corre” pela sobrevivência. Violências que por vezes alvejam esses corpos literalmente, com intenção de matar.

Palavrão no livro não pode, mas tem toda a permissão nas redes

Na outra ponta, no campo intelectual, o mesmo Brasil colônia que despreza trabalhadores de baixa renda, se entende como balizador moral da nação. Como o racismo é um marcador da nossa formação, como ele é argamassa desta mesma casa grande com softwear atualizado que oprime entregadores em pleno século 21, é ele também que embasa os ataques aos pretos que não estão na bicicleta com a mochila de comida nas costas, mas escrevendo as histórias que em muito explicam, denunciam e revelam os mecanismos deste país ainda hipócrita e mantenedor de privilégios.

Numa demonstração do quanto pode ser perniciosa uma campanha de difamação, uma profissional de educação retira duas frases com alguns palavrões sexualizados e racializados do livro “O avesso da pele” e, indignada, vai para as redes falar do absurdo que é ter a obra nas escolas.

Um livro ganhador do Prêmio Jabuti, avaliado por outras dezenas de educadores e adotado em milhares de escolas, mas toda esta gente é tida como ignorante pela professora ofendida e pelo visto não sabem o que é bom para jovens do ensino médio.  Adolescentes que, às vezes dentro própria escola, passam horas sem mediação nas redes sociais em contato com todo tipo de linguajar, notícias falsas, conteúdos para lá de violentos e duvidosos com teor sexual, piadas racistas, machistas, etc. Tudo isso pode. O que não pode é um livro que justamente problematiza o racismo nas relações, inclusive as que acontecem na cama.

É histórico

O Brasil passou mais de 300 anos da sua história sem permissão para publicar livros em solo nacional. O que era lido nestas bandas precisava passar pelos censores da metrópole e, mesmo depois deste período, livros sempre foram objetos temidos por uns, detestados por outros e desejados por quem intuía que ali poderia ser um campo onde o pensamento e o espírito poderiam voar sem amarras.

Tudo isto, obviamente, tem efeitos na forma como o país percebe a literatura até hoje e com reflexos na educação, este lugar interrompido e corrompido para uma maioria negra e pobre, que cedo precisa se apressar para pagar o jantar com o dinheiro do almoço vendido, às vezes, com o mochilão de comida nas costas e o pé na tábua de uma bicicleta ou de uma moto de segunda mão.

Sobre a dona professora tão moralista, escandalizada e indignada, que expôs a escola, seus colegas, os alunos, o autor, a editora e o sistema de ensino ao ridículo com suas observações superficiais de quem não leu a obra, dizem que será candidata a vereadora. Se for verdade, grande chance de ser eleita pelos que estão ávidos pela volta de um passado distante e recente de retrocessos.

Sobre o policial que atirou no jovem entregador… alegou legítima defesa, foi liberado na hora e, mesmo que aconteçam desdobramentos ruins para ele, estas informações bastam.

Por fim, uma outra notícia desta mesma semana: em presídios de Minas Gerais, onde o super encarceramento de homens pretos não é diferente do restante do país, livros não podem entrar.  Apenas os de autoajuda… e a Bíblia. Quem determina a leitura que alivia quem está na agonia da prisão?  Voltamos aos tempos do censor da coroa, pois, sim, a literatura é verdadeiramente um campo onde o pensamento e o espírito podem se libertar e voar sem as amarras.

Não são casos isolados e desconectados. São faces do combo de Brasil colônia com roupas de século 21. É este mesmo o país que queremos?

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