Por Lucas Pedretti e Thiago Domenici — Agência Pública
Nos primeiros dias de março de 1985, pouco antes de José Sarney assumir a Presidência da República, o temido Serviço Nacional de Informações (SNI) produziu um estudo sigiloso, “As informações nos regimes democráticos” em que comparava a atuação de agências de inteligência em democracias e em regimes totalitários, caso do próprio SNI.
Na avaliação do órgão, empregar nas democracias “certos métodos” poderia levar a “violações do direito individual e a prática de atos abusivos”. Além disso, o documento diz que as buscas de informações estariam “sujeitas a opinião pública e legislação mais liberais, tornando-se difícil estabelecer um limite onde as ‘legítimas aspirações do Estado terminam e começam os direitos de privacidade dos cidadãos’”.
O documento fala mais. Avalia que, justamente na ausência de opinião pública e de partidos políticos de oposição, os Serviços de Informações podiam atuar sem nenhum “embaraço ético” e sem “impedimento legal” nos regimes totalitários. E conclui: “Este é o aspecto básico que diferencia os Serviços de Informações do mundo inteiro”.
Esse é apenas um relatório de um conjunto de documentos inéditos encontrados no acervo do SNI pela Agência Pública, custodiado hoje no Arquivo Nacional, que revelam como o órgão se movimentou politicamente para manter suas atividades de arapongagem mesmo após a saída do último general-ditador da Presidência da República.
O nascimento do “monstro”
Criado imediatamente após o golpe de Estado de 1964, que completa 60 anos no próximo dia 31 de março, o SNI se tornou rapidamente o centro do complexo aparato repressivo estruturado pelos militares. Instituído pela Lei nº 4.341, de 13 de junho de 1964, o objetivo legalmente previsto para o órgão era “assessorar o Presidente da República” em relação às atividades de informação e contra-informação”. Na prática, os agentes do SNI desempenhavam todo tipo de ação vinculada à repressão política, participando de operações de rua e de sessões de tortura.
O idealizador do SNI foi o general Golbery do Couto e Silva, um dos principais articuladores do golpe de 1964. Golbery chefiou o órgão no início do regime e foi sucedido por militares que posteriormente chegariam ao centro do Poder Executivo federal, como Emílio Garrastazu Médici e João Baptista de Oliveira Figueiredo, evidenciando o peso político que o SNI possuía.
A historiadora Priscila Brandão, autora do livro “SNI e Abin: uma leitura dos serviços secretos brasileiros ao longo do século XX”, explica que, após sua criação, o órgão se expandiu rapidamente. “O SNI vai, igual a um polvo, se espalhando pelo Estado. Onde ele acha que precisa, ele cria uma agência nova”, explica a historiadora. Logo, o serviço tinha braços espalhados nos ministérios civis, nas universidades e nas empresas públicas, além de se articular com os serviços de informações das três Forças Armadas, com o Conselho de Segurança Nacional e com as secretarias de Segurança estaduais.
Esse conjunto de organismos de espionagem e repressão constituía uma rede altamente capilarizada e autônoma de arapongagem. Com isso, o regime conseguia monitorar intensamente toda e qualquer movimentação vista como uma ameaça à segurança nacional pelos militares. Como a Doutrina de Segurança Nacional, substrato ideológico dos militares, era baseada em uma visão de mundo altamente paranoica e autoritária, isso significou, na prática, que praticamente todos os setores da sociedade foram alvo de algum tipo de espionagem no período.
Um estudo feito por especialistas do Arquivo Nacional de Brasília em 2008 chegou ao número de mais de 300 mil brasileiros fichados durante a ditadura pelo SNI, muitos dos quais foram presos, torturados e assassinados. Mas, com o fim do regime, colocou-se a questão sobre o que fazer com o órgão. O próprio Golbery vaticinou: “Criei um monstro”. A constatação revelava as dificuldades que a nascente democracia teria para desmontar um aparelho tão poderoso, detentor de dados sensíveis sobre todas as lideranças políticas do período.
“Entulho autoritário”, SNI tentou sobrevida
No documento “Principais abordagens da imprensa sobre o Sistema Nacional de Informações”, o SNI se mostra incomodado com as críticas que se avolumavam na imprensa nacional sobre o seu destino. Sem meias-palavras, o órgão registra que “foi criado sob um regime de censura que perdurou até 1977, imunizando-o contra críticas públicas”. Segundo outro trecho, causava “descontentamento muito profundo aos integrantes do SNI a intensa crítica ao órgão que, nos últimos anos, e agora mais particularmente na transição do governo federal, vem sendo externada através da imprensa”.
E o caminho apontado no documento mostra o que o SNI planejava fazer: “o que importa é a mudança da imagem pública”. A escolha dos arapongas, mostra o documento, não era a de passar a atuar nos marcos do estado de direito. Mas, sim, encontrar formas de garantir que sua “imagem pública” não fosse atingida.
Na redemocratização, a ideia de que a saída da ditadura deveria ser feita sem rupturas era a dominante. No período, defendeu-se uma “reconciliação” marcada pelo “esquecimento” e sem “revanchismo” perante os crimes e atrocidades dos militares.
As poucas iniciativas que pediam medidas de reconhecimento das violências da ditadura ou reformas institucionais – como projetos de lei que buscavam extinguir o SNI — eram monitoradas de perto pelo órgão. É o que revelam relatórios que recebiam títulos como “Campanhas pela extinção do Sistema Nacional de Informações e pela revogação de leis ditas ‘arbitrárias’, movidas por organizações subversivas de ideologia comunista” ou “Campanhas revanchistas e pela extinção do Sisni”.
Esses informes mostram como a ideia de que o serviço deveria passar por reformas para se adequar aos marcos da democracia era inconcebível pelos agentes, que entendiam essas propostas como parte de uma grande campanha dos “subversivos”.
“As organizações comunistas atuantes no Brasil vêm pregando em seus documentos, bem como em todos os atos de que participam ou promovem, a extinção do Serviço Nacional de Informações (SNI), a revogação da Lei de Segurança Nacional (LSN) e o desmantelamento do Sistema Nacional de Informações (Sisni)”, sintetiza um desses relatórios.
Em um relatório mais detalhado, de maio de 1987, o SNI apontava que “o acompanhamento diário da Grande Imprensa Nacional — GIN, revelou que são publicados artigos relacionados com o Sisni”. O documento mostra que o serviço buscou identificar possíveis fontes de jornalistas de veículos como a revista Veja, a Folha de São Paulo e o Jornal do Brasil.
Em dezembro de 1987, novo relatório listava artigos e reportagens publicadas pela Veja e pelo Estadão sobre o envolvimento do SNI com a repressão política da ditadura. “Os artigos em questão”, concluía o araponga autor do informe, “pelas características com que se revestem, sobretudo quanto ao fato de se tentar volver, ao momento atual, fatos atribuídos ao SNI no início da década de 70, vêm desgastando a imagem do órgão”. Assim, o agente demonstrava “preocupação quanto aos desdobramentos que poderão advir em decorrência dessa campanha” que, segundo o documento, tentava “fomentar no seio da opinião pública uma imagem negativa do Órgão — com vistas ao seu total descrédito — em que pese a relevância, seriedade e competência do trabalho de assessoramento que este vem desenvolvendo”.
Ao longo da redemocratização, já sob um governo civil, o SNI atuava não para se adequar aos parâmetros democráticos do novo regime, mas sim para “neutralizar” o que eles consideravam ameaças à sua imagem. Essa atuação ganharia contornos ainda mais intensos durante a Assembleia Nacional Constituinte (ANC).
O lobby do SNI na redemocratização
Entre os documentos localizados pela Pública estão relatórios que comprovam como o SNI buscou ativamente parlamentares que integravam a ANC para apresentar propostas legislativas a serem incluídas na nova Constituição. Os próprios parlamentares foram espionados pelo SNI durante a ANC.
Priscila Brandão explica que, quando os trabalhos da ANC ainda estavam na fase das comissões temáticas, o colegiado responsável por discutir temas de inteligência e defesa ficou sob comando de Ricardo Fiúza, parlamentar próximo dos militares. “Nada do que foi proposto fora do interesse deles foi aprovado”, sintetiza a historiadora.
Ocorre que havia outra frente de batalha: o colegiado em que seriam discutidos os direitos fundamentais. Foi na Comissão da Soberania e dos Direitos do Homem e da Mulher que se debateram os artigos que deveriam garantir o direito à privacidade, ao sigilo de correspondência, e ao habeas data — instituto que prevê que todo cidadão pode requisitar ao Estado as informações que os entes públicos detêm sobre ele.
Naquele momento, em junho de 1987, o SNI produziu um primeiro relatório com um teor semelhante ao de um estudo interno. Cada um desses artigos era analisado e os agentes apresentavam diferentes sugestões, em ordem de prioridade.
No artigo que salvaguardava o “sigilo da correspondência e das comunicações em geral, salvo autorização judicial”, o SNI sugeriu suprimir a expressão “salvo autorização judicial”. Assim, buscava abrir caminho para manter a prerrogativa de, à revelia de decisões do Poder Judiciário, poder interceptar comunicações privadas.
A agência propunha também eliminar o artigo que previa que “O Estado não poderá operar serviços de informações sobre a vida íntima e familiar das pessoas”. Caso não fosse possível suprimir todo o trecho, o SNI sugeria que se adicionasse, ao final da redação, a seguinte ressalva: “salvo quando imprescindíveis à salvaguarda dos maiores interesses da Nação”.
O SNI sugeriu, ainda, a exclusão do artigo que previa o habeas data. Na justificativa apresentada, os arapongas afirmavam que “a excessiva liberalidade para obtenção de dados, disponíveis em órgãos do Estado, levaria ao perigo de tornar vulneráveis às atividades sigilosas de interesse da Nação”.
Esse estudo feito pelo SNI foi seguido pela implementação de uma estratégia de lobby e atuação política da agência para fazer valer seus interesses.
Em agosto daquele ano de 1987, a Constituinte já se encontrava em uma etapa posterior. Corriam os trabalhos da Comissão de Sistematização, que tinha o objetivo de apresentar o primeiro anteprojeto de texto para a nova Carta Magna. Nesse mês, o SNI produziu um novo relatório, detalhando o lobby organizado pela agência.
Segundo o documento, “durante a fase de apresentação de Emendas ao Anteprojeto da Comissão de Sistematização”, o órgão “promoveu articulações com diversos Senadores e Deputados Federais, com vistas a defender os interesses inerentes às suas atividades”.
O texto detalha que foram apresentadas 101 emendas por 13 constituintes, buscando suprimir ou alterar 12 dispositivos do texto. O documento conclui que “como coroamento, no Substitutivo do Relator, obteve-se resultados satisfatórios em 08 dispositivos”.
O relatório segue, então, detalhando os artigos que o SNI tentou alterar. Para além daqueles já presentes no estudo anterior, o documento revela um novo dispositivo que incomodava os arapongas: o que declarava a tortura um crime de lesa-humanidade. Por meio de uma articulação com o deputado Ottomar Pinto, um militar então filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), o SNI tentou excluir o texto do anteprojeto de Constituição.
Mesmo obtendo resultados “satisfatórios” nessa etapa, o SNI seguiu organizado para os momentos seguintes da Constituinte.
Na virada de 1987 para o ano seguinte, uma mudança importante ocorreu na Constituinte: o surgimento do bloco suprapartidário intitulado Centrão. A articulação tinha como objetivo barrar o que os parlamentares mais conservadores entendiam como excessos liberalizantes do texto que se desenhava até aquele momento.
Assim como as Forças Armadas, o SNI viu no Centrão um aliado de primeira hora. Entendendo a esquerda como seu principal adversário na ANC, a agência passou a se articular diretamente com o grupo. É o que revela um outro relatório, de janeiro de 1988, já após a conformação do Centrão e apresentação de um primeiro anteprojeto pelo bloco.
Segundo o documento, “o Projeto de Constituição do Centrão, apresentado sob a forma de Emendas, em 14 Jan de 88, atende aos interesses do Serviço”. Mas os arapongas faziam ressalvas: “Não obstante, os seguintes dispositivos merecem algum reparo, pois não atenderam integralmente às solicitações que fizemos”.
O órgão apontava, por exemplo, que o artigo que determinava a garantia da proteção da vida privada dos cidadãos representaria uma “inibição” à atividade policial. Já ao analisar o texto que protegia a inviolabilidade das correspondências e das comunicações, o relatório afirmava que ainda pretendia alterar os termos do artigo.
O trecho é revelador de que o SNI seguiria atuando na derradeira etapa da Constituinte: a fase de Plenário. Nos documentos localizados pela Pública, não há detalhes de como operou o lobby nesse momento. Mas os relatórios evidenciam como a agência buscou, até o último instante da Constituinte, eliminar do futuro texto constitucional elementos basilares de um estado de direito — como a garantia da proteção da intimidade e a inviolabilidade das comunicações privadas.
Apesar de a nova Carta Magna trazer algumas das garantias que o SNI queria simplesmente eliminar, a agência sobreviveu à mudança de regime. “Nós passamos por uma transição política e o poder civil não foi capaz de peitar o poder militar a ponto de extinguir o SNI”, aponta Brandão.
Sua extinção ocorreria apenas em 1990, nos primeiros dias do governo Collor. “Não necessariamente porque o Collor tinha um grande projeto para a atividade de inteligência”, esclarece a historiadora. “Quando Collor era candidato, o então chefe do SNI deu um chá de cadeira de cinco horas nele. Então sua atitude de extinguir o SNI está vinculada a uma vingança pessoal.”
Tampouco o contexto de criação de um novo órgão de inteligência seria marcado por discussões profundas sobre o tema. “A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) foi criada em 1999 como resultado de um debate congressual muito pobre”, explica Brandão. Inicialmente, o governo Fernando Henrique Cardoso buscou estabelecer a agência por meio de Medida Provisória em 1995. Diante de críticas do Congresso, apresentou um Projeto de Lei em 1997. “Mas haverá pouquíssimos debates para se chegar à redação final da lei”, registra a historiadora.
O resultado foi uma lei caracterizada pela especialista como “muito ruim”, por trabalhar com um conceito “extremamente amplo” sobre o que é a atividade de inteligência, o que abriria caminho para distorções da atividade da agência. Além disso, Brandão explica que, até hoje, a doutrina que o órgão segue é influenciada pelos termos da Doutrina de Segurança Nacional da ditadura.
“Então esse é o grande problema”, sintetiza Priscila Brandão. “Tem uma percepção do indivíduo, do cidadão brasileiro como inimigo, como alguém que pode ter os seus direitos desrespeitados.”
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