Lembrei da livraria que frequentava quando menino, ainda quando era office boy do extinto Banco Nacional. Comecei a trabalhar formalmente aos dezesseis anos, primeiro na rua da Quitanda, depois na rua da Alfândega, próximas da Livraria Padrão, no Centro da cidade do Rio de Janeiro.
Chamava-me atenção que o dono atendia como balconista. A certa distância o ouvia comentar os conteúdos dos livros. Falava com entusiasmo e sem afetação sobre Literatura, Ciências Sociais, Filologia, Filosofia… discorria sobre variados temas com desenvoltura de quem leu antes de vender. Intelectuais, professores e autores conversavam com ele amistosamente de forma prosaica.
Estar ali era uma delícia! A Livraria Padrão era sobretudo um ponto de encontro de leitores, para além de qualquer outra distinção disciplinar ou acadêmica.
Nunca me atrevi a falar com ele. Por timidez, preferia recorrer a um vendedor. Quando admiro muito uma pessoa fico cerimonioso e quase não abro a boca.
Fiz graduação e mestrado no histórico prédio do Largo de São Francisco, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS-UFRJ), pertinho da Livraria Padrão. Tornei-me cliente, contudo, continuei evitando o proprietário, Alberto Abreu.
Depois de tantos anos, as megas livrarias (ou MegaStores) chegaram ao Centro da cidade com seus funcionários estilizados, peritos em sistemas de buscas. Ficou evidente o contraste entre linha editorial artesanal e a produção livresca em larga escala, tipo industrial.
O romantismo no Rio Antigo parecia fadado à falência.
Muitos anos depois passei pela calçada da velha Livraria Padrão, na rua Miguel Couto 40, quase esquina com a rua da Alfândega, e avistei lá dentro da loja o velho livreiro que me inspirou tanto na adolescência e juventude.
Como quem olhava os livros expostos na vitrine, constatei que só estava o seu Alberto na loja. Fiquei aliviado em vê-lo vivo e ativo. Entrei e perguntei por um título. Ele levantou-se com dificuldade e foi procurar nas prateleiras o que lhe pedi. Não fui estimulado a consultar no computador o sistema de busca.
Nada falei da minha condição de admirador secreto por mais de três décadas. Nada perguntei sobre o mercado de livros ou qualquer outra coisa que pudesse afetuosamente me aproximar dele. Não puxei conversa por pura timidez. Portei-me como um cliente interessado num livro específico.
Percebi o quanto envelhecera. Andar arrastado, mobilidade teimosa, pesado, voz fraca. Não tinha o que eu procurava, mas apresentou-me uns outros cinco títulos a partir do meu interesse expresso.
Saí dali no final da tarde para ministrar aula numa universidade. Comovido com uma certa dignidade que o tempo não verga.
Naquele espelho, olhei e percebi os sinais do tempo. Não era mais o menino uniformizado cumprindo turno no primeiro emprego, nem o universitário cabeludo com camiseta das Diretas Já com traços do Henfil ou do Ziraldo. O tempo que passou para ele, passou para mim.
A Livraria Padrão, na rua Miguel Couto, fechou as portas definitivamente no início de 2015. Soube do falecimento do seu Alberto pelo post (Facebook, 19 de fevereiro de 2015) da Livraria Rio Antigo.
Seu Alberto estreou no mercado livreiro em 1938 e nele permaneceu por 77 anos. Aos 92 anos, de segunda a sexta-feira, entre 9h e 18h, cumpria o seu turno na livraria na condição de balconista. Apaixonado pelo que fazia e tendo nos livros a mediação da arte do encontro.
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