Alguém já lembrou que a vida, as relações uns com os outros e a política são profundamente marcadas pelo remorso. As pessoas até tentam dizer que não, que passa, deixa lá no passado, não vamos remoer isso, não vamos ter remorso daquilo. Pois é, mas histórica e linguisticamente isso não é possível. Oriunda do latim medieval, a palavra “remorsum” significa a dor provocada pela consciência. Impressionante, não? Qual consciência dói em nós? “Remorsum” vem portanto do verbo latino “re-mordere”, que significa voltar a morder, causar sofrimento prolongado ou repetido. O prefixo “re” indica a repetição do ato. Quem nunca mordeu a língua mais de uma vez?
Do verbo “remordere” vem o verbo, no português, “remoer”. Da literalidade do “morder novamente” sua língua ou a carne que o valha. Contudo, “remoer” carrega também, na linha da consciência, essa dor metafórica, essa importunação, esse pensar insistentemente que causa aborrecimento. Como se, ao insistirmos numa ação, estivéssemos “mordendo” alguém, machucando o outro, fustigando os sentimentos das pessoas. O fato é que estamos sempre a remoer tudo o que se passa conosco, seja um coração partido pelo amor que se foi, seja pelos traumas coletivos de uma nação.
É esse, portanto, o teor da questão que envolveu a declaração do Presidente Lula numa entrevista para o É Notícia, da RedeTV!, que foi ao ar na noite do dia 27 de fevereiro. Na ocasião, observou o Presidente:
“O que eu não posso é não saber tocar a história para frente, ficar remoendo sempre, remoendo sempre, ou seja, é uma parte da história do Brasil que a gente ainda não tem todas as informações, porque tem gente desaparecida ainda, porque tem gente que pode se apurar. Mas eu, sinceramente, eu não vou ficar remoendo e eu vou tentar tocar esse país para frente”.
Lula se referia à Ditadura Civil-Militar (1964–1985), cujo golpe de “inauguração” completa 60 anos no dia 1 de abril. O termo “gente desaparecida” se refere aos milhares de mortos e desaparecidos pela brutalidade dos agentes torturadores que seguiram praticamente impunes pelos crimes que cometeram. Com o avanço das pesquisas acadêmicas e com as pressões das organizações civis, há um volume de informação não apenas suficiente para evitar que o Estadista rejeite o nosso “remoer” e a nossa dor de cada dia, mas o suficiente, por exemplo, para rever, ou remoer, a Lei de Anistia (1979) e abrir espaço para a ferida não apenas terminar de sangrar, mas termos a possibilidade de uma escuta e de um debate que possa ajudar a nos curar.
Tal é o ponto, todos estamos remoendo tudo o tempo todo. Lula não está remoendo até hoje as dores que a “Lava Jato” lhe causou? Não estamos todos remoendo a devastação moral e física que os togados parciais nos causaram a todos e todas? Pois é. É compreensível que o Chefe de Estado de um país marcado por golpes militares tente não “remoer o passado” ou tente apaziguar os ânimos com o comando militar. Mas é aí que sua tentativa de aliança naufraga fragorosamente.
O Brasil é o país do golpe, do remorso e do ressentimento. De um lado, os militares sempre defendendo a tese de que inventaram a República, moralizaram o país e que toda vez que “devolvem” o poder aos civis, sempre se arrependem, remoem e querem tudo de volta. Foi assim com parte do Tenentismo, foi assim com a farsa de 1937, no Estado Novo de Vargas, foi assim em 1964, em 1984 e também foi assim em 2016 e 2022. Em outras palavras, os militares são os mestres da arte de remoer e repetir tudo como farsa. E precisamente por saber mobilizar o remorso, a caserna não perde uma única oportunidade para atacar as tentativas de consolidação do Estado Democrático de Direito. Do outro lado, uma sociedade civil fustigada pela dor, por um passado que nos castiga e recastiga com seu autoritarismo estrutural. Remoendo todos os dias uma violência sem fim.
Não há saída fácil. Mas a primeira tarefa é pensar a História. Digamos que a História também é a arte de saber remoer para conseguir narrar e interpretar. Ou rumamos definitivamente para tal arte, num efetivo espaço e esfera pública sobre as dores do nosso passado, ou não haverá futuro suportável nesse país. História é conflito, mas também conciliação. E o Presidente, que chegou no terceiro mandato com uma boa carga de leitura de História, sabe muito bem disso. Quer melhor síntese da História do Brasil do que as dores, conflitos e (re) conciliações de Luiz Inácio no mínimo desde 1979?! Se ele não quer remoer a dor causada pela caserna, é porque não sente ou por que não quer sentir novamente? O problema é que uma dor assim pungente não é individual, ao “negá-la”, ela voltará sempre para te morder e derrubar novamente.
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