São Paulo, 470!
A cidade da força da grana que ergue e destrói coisas belas fez 470 anos. Mas a gente bem sabe que a fundação da Vila de São Paulo de Piratininga, em 25 de janeiro de 1554, por padres jesuítas, faz parte do quadro geral de um processo violento de conquista e colonização que não começou naquele momento e que, de muitas formas, ainda continua nos dias de hoje. Digamos que a “Pauliceia Desvairada” de Mário de Andrade demorou séculos para se tornar a tal da cidade que nunca dorme e todo tipo de epíteto de aceleração do tempo que desde cem anos pra cá denomina a cidade.
SÃO PAULO DOS MUNDOS EM GUERRA
Comecemos pelo começo. São Paulo, antes de ser santa e católica, era indígena, sua natureza e rios exuberantes, trabalhados durante séculos por muitas etnias, são a razão de ser de um território que sempre foi das águas. A Piratininga, que significa em tupi-guarani “peixe seco”, ficava na colina onde hoje está o Páteo do Colégio, vila fundada entre os rios Tamanduateí (em tupi “rio dos tamanduás verdadeiros” ou “rio de muitas voltas”) e seu pequeno afluente, o rio Anhangabaú (em tupi “rio ou água do mau espírito”). Os rios foram paulatinamente alterados e ao longo do século 20, por um vício persistente das elites do urbanismo paulistano, eles foram canalizados e soterrados. Mas sim, cidade das águas, rio Tamanduateí que deságua no grande Tietê, rio que a cidade perdeu para muitas guerras. Guerras dos Bandeirantes contra os indígenas daqui e de todos os “sertões” devassados, arrasados e explorados que fazem dos bandeirantes não os heróis de gibão do século 20 e dos livros didáticos, mas mercenários e foras da lei em sua própria época, o século 17. Mercenários que eram contratados por senhores de engenho do Nordeste para destruir, por exemplo, os quilombos, como foi o caso do “Quilombo dos Palmares”. Mundos em guerra, nos lembra o Krenak. Europeus e brancos do capitalismo mercantil, numa sanha de lucro, catequização e escravidão, um apocalipse constante desde então contra os povos nativos e contra os povos africanos. E continua hoje… aqui e nos “sertões” da Amazônia…
SÃO PAULO “PRIMA POBRE”
Exatamente por não estar no radar dos grandes empreendimentos comerciais do açúcar da região de Pernambuco e Bahia do período colonial, a São Paulo que hoje conhecemos como a mais rica, mais pujante, concentradora da quarta maior aglomeração urbana do planeta (só na região da cidade de São Paulo e Grande São Paulo somos mais de 22 milhões de pessoas) levou séculos como vila e cidade das mais acanhadas de todas as Américas. São Paulo foi uma cidade de taipa e de barro até meados do século 19 (1850), era conhecida pelos estudantes de Direito do Largo do São Francisco por ser uma cidade “modorrenta”, lenta, onde o tempo não passava. Quem diria, não? Ora, em 1872 havia apenas 30 mil almas na cidade. Na Capital do Império do Brasil, o Rio de Janeiro, havia mais de 270 mil habitantes no mesmo ano. O fato é que a cidade de barro se reduzia à conhecida colina histórica, balizada pelos conventos de São Francisco, Carmo e São Bento. No final do século 19, São Paulo ainda se parecia com uma cidade do interior, com ruas de terra, igrejas dominando a paisagem, chácaras e escravidão.
SÃO PAULO “PRIMA RICA”
Mas o que fez da pequena cidade uma metrópole em pouco mais de três décadas? Entre outras cousas e causas, São Paulo vai aos poucos se tornar a cidade sede dos cafeicultores do Oeste Paulista. A marcha da produção de café, vinda do Vale do Paraíba, e levada a cabo pela mão de obra de africanos escravizados, dominou as paisagens do interior paulista e fez da Província de São Paulo um dos maiores complexos cafeeiros de toda a história mundial. A elite do café precisava de um novo palco, uma nova cidade, uma nova roupagem para os seus empreendimentos e altíssimos lucros. Era preciso investir. Veio a ferrovia, veio a nova mão de obra, veio uma imensidão de imigrantes para a lavoura e para a cidade. Veio o novo cemitério, veio o bonde elétrico, veio a nova vitrine, a nova sede de governo, os automóveis, as novas avenidas, as indústrias, o novo teatro para sua pujante burguesia. São Paulo era a sede do Capital e a Capital dos grandes lucros da exportação de café, agora convertidos em novos investimentos. O sol começava a brilhar mais forte na colina da garoa. São Paulo deixava o mundo todo “doidão” com seu café estimulante e se tornava o lugar mais tresloucado do Brasil, para nunca mais perder o posto até hoje.
METRÓPOLE DELIRANTE
Pois então, em 1900 São Paulo contava com aproximadamente 240 mil pessoas, em 1920 já tinha mais de 540 mil, em na década de 1940 já tinha mais de 1 milhão! De barro e taipa, depois de tijolo e depois de concreto armado, São Paulo é o palco de uma das mais avassaladoras transformações urbanas da humanidade. Força da grana, força da brutal exploração do trabalho, trabalho indígena, trabalho africano, trabalho alemão, trabalho italiano, trabalho árabe, trabalho nordestino, boliviano e novamente africano? Vila, Cidade e Metrópole em menos de 1 século, metrópole delirante que já deixava para trás as aventuras de Macunaíma para inventar outras tantas. Demolições, novas construções, mais demolições. Na década de 1970, com mais de 6 milhões de habitantes, a antiga cidade de barro já era de concreto e já era vertical, cheia de viadutos, e absolutamente repleta de periferias, afinal, a elite branca e quatrocentona não queria/ quer essa gente toda perto dela, não é?
O AVESSO DO AVESSO
São Paulo foi assim reinventando a concentração de todo tipo de Capital e reiterando sua força. Mandou na Primeira República inteira e até hoje ainda é uma máquina de eleger Presidentes da República. Lula, por exemplo, se fez na Grande São Paulo (ABC) da indústria automobilística, Fernando Henrique Cardoso se fez na USP. E os próximos presidenciáveis com mais chances certamente serão os que fizeram ou têm carreira política em São Paulo. A força da grana, a sede do Capitalismo brasileiro. Cidade que constantemente alimenta os sonhos de vencer na vida, de fazer fortuna, de viver o sonho brasileiro. O problema é que o sonho da razão bandeirante é principalmente a exploração, a mão de obra precarizada em toda parte, a violência, a precariedade urbana, o cinismo das elites, os mais de 50 mil moradores de rua e poucos padres Julios para dar conta de cuidar de tanta gente em desespero. Cidade de moer gente, de matar gente, de adoecer gente, cidade ilusão, cidade sombria, cidade poluída, cidade que mata rio, cidade que mata passarinho. Cidade alucinante, desigual, brutal, delirante! Aqui ninguém, dos jesuítas aos financistas, ninguém vai pro céu… 470 anos, da colina da catequização colonialista aos arranha-céus Berrini-Faria Lima. 470 anos de um lugar feito de gentes de todo o mundo, que trabalham, vivem, sofrem e morrem na vila-cidade-metrópole… viver e morrer em SP, quem vai querer?
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