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Jessé Souza

Escritor, pesquisador e professor universitário. Autor de mais de 30 livros dentre eles os bestsellers “A elite do Atraso”, “A classe média no espelho”, “A ralé brasileira” e “Como o racismo criou o Brasil”. Doutor em sociologia pela universidade Heidelberg, Alemanha, e pós doutor em filosofia e psicanálise pela New School for Social Research, Nova Iorque, EUA

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‘Servidão’ ou a urgência do cinema político de Renato Barbieri

Barbieri mostra, como poucos, as vísceras de um Brasil cuidadosamente escondido,
30/01/2024 | 08h15

Assisti a umas das premieres do novo filme de Renato Barbieri chamado “Servidão”, sobre o trabalho escravo no Brasil. Esta realidade triste revela a continuidade de 500 anos da dominação social brasileira, como a mais perfeita continuidade do seu passado escravocrata, como talvez nenhuma outra. Como o filme revela, o ex-escravo, pós-abolição, foi lançado sem proteção e sem compensação em um mercado de trabalho que ele não conhecia e que lhe era hostil e estranho. Jamais houve qualquer iniciativa destinada a adaptá-lo às novas condições. E essa adaptação seria necessária, já que as condições do trabalho escravo são muito distintas daquelas do trabalho livre.

Além disso, o ex-escravo sofre a concorrência fatal do recém imigrado europeu, especialmente o italiano, que trazia na sua vivência a experiência anterior com o trabalho livre que havia lhe permitido construir uma ética de trabalho adaptável ao mercado de trabalho competitivo. O negro foi jogado às margens da sociedade e excluído de qualquer direito. O racismo aqui mostra sua face mais cruel na medida em que a inadaptação do negro, como mostrado magnificamente por Florestan Fernandes no seu clássico “A integração do negro na sociedade de classes[1]”, passa a ser vista como “culpa própria”, inclusive pelos próprios negros, baixando mais ainda a sua autoestima já destruída pelo sadismo escravocrata.

O grande mérito do filme de Barbieri é mostrar que essa realidade continua intocada no país inteiro, e está prestes a completar 150 anos de vigência. Nesse sentido, seu novo filme é uma espécie de continuação e de contextualização histórica mais ampla do seu excelente e premiadíssimo “Pureza”, com Dira Paes no papel principal. A massa de escravizados, praticamente toda ela negra ou mestiça, e desprovida até hoje de qualquer ajuda, é arregimentada por “capitães do mato”, agora em caminhões “pau de arara”, que levam os trabalhadores empobrecidos e desesperados a milhares de quilômetros de suas casas em lugares inóspitos e sem possibilidade de fuga.

Os trabalhadores são cobrados pelo uso das enxadas e facões que utilizam, não sobrando nada para levar para casa. A lógica desta exploração, com moradia e comida precaríssimas, é super-explorar, sem dó nem piedade, o trabalho daqueles cuja pobreza é tanta que os deixa sem qualquer defesa. Como no caso paradigmático de Marinaldo, um negro escravizado que perdeu boa parte da vida — mas não a sua dignidade — em uma escravidão que sequer percebia enquanto tal, o Brasil é uma grande fábrica de moer gente. Gente que poderia ter sido feliz, produtiva, criativa e reconhecida socialmente. A ignorância e a passividade construída contra o pobre e o negro os tornam matéria-prima descartável de uma elite rural (e urbana) que se diz “pop”, mas que se construiu, na verdade, roubando terras, assassinando posseiros e escravizando quem encontrasse no seu caminho.

O cinema de Barbieri é urgente e necessário, porque ninguém mostra essa realidade ao público. Esconder este mundo embaixo do tapete e fingir que ele não existe é o “modus operante” não só da elite, mas também da sua imprensa, do seu cinema, do seu teatro e de toda a indústria cultural sob seu comando. Como mostra a Rede Globo paradigmaticamente, a estética e o preciosismo técnico mais moderno estão a serviço, entre nós, da distração e do fingimento, construídos para que jamais se veja o mundo social atrasado e desumano como ele é. Barbieri mostra, como poucos, as vísceras de um Brasil cuidadosamente escondido, mas que grita para ser visto. Seria revolucionário e urgente levar o seu cinema a todos os rincões deste país.

[1] Fernandes, Florestan, “A integração do negro na sociedade de classes”, Contracorrente, 2021.

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