O verdadeiro horror em Gaza é a normalização da barbárie. Primeiro foi a barbárie do ataque a Israel e a morte ou rapto de 1300 pessoas. Agora, a vingança, e o horrível massacre de milhares de civis como resposta. Esta é a doutrina israelita — “escalation dominance”: se me atinges, eu atinjo-te de volta, mas com mais força. Desta vez a retaliação é brutal: matar e destruir tudo o que encontramos pela frente. O ocidente acha que o grande problema é que os israelitas não têm uma solução política para Gaza. Não é verdade. Têm, mas não pode ser dita: chama-se limpeza étnica.
Este ano, o Tribunal Internacional de Justiça das Nações Unidas declarou ser “plausível” que os atos de guerra de Israel em Gaza violem a Convenção sobre Genocídio. Um consórcio de universidades de defesa de direitos humanos elaborou um relatório que conclui que “Israel cometeu atos de genocídio (…) para obter a destruição física dos palestinianos em Gaza.” Foi a isto que chegámos. Um Estado de judeus acusado de genocídio. Parece que a única questão ainda em discussão tem a ver com a intenção. Quanto aos resultados, não há dúvidas — com a morte de milhares de civis e a destruição física do território, Israel está a fazer uma limpeza étnica em Gaza.
Recuemos um pouco para pôr as coisas em perspetiva. A tragédia israelita chama-se ocupação, que existe desde 1967. Mais de cinquenta anos de ocupação. E o drama das potências ocupantes é que enquanto ocupam uma terra que não é a sua têm também de enfrentar guerras de Independência, ou de libertação — ou de insurgência como a doutrina militar ocidental acabou por lhes chamar. O que distingue estas guerras das outras é que não há uma frente de batalha, nem um inimigo reconhecível. O inimigo está por todo o lado e em lado nenhum: à nossa frente, atrás de nós, ao lado de nós. Estas guerras parece não terem fim: por cada vítima civil, um novo combatente se juntará à luta; por cada criança morta, mais um pai e um irmão e um primo aderirão à rebelião. Israel está a testar em Gaza uma nova forma de combater a insurgência — matá-los a todos. Se o inimigo está misturado com a população, então matamos a população que está à volta. Não se trata apenas de derrotar o Hamas, mas de aniquilar a população que apoia o Hamas. De derrotar o sentimento nacional palestiniano. A limpeza étnica é uma tática militar.
No chamado Grande Israel (Israel propriamente dito e os territórios ocupados de Gaza e da Cisjordânia) vivem sete milhões de palestinos e sete milhões de judeus. Independentemente da história, no território que se costuma chamar “do Rio até ao Mar”, os dois povos têm agora o mesmo número de habitantes. Há, portanto, três formas de convivência — ou dois Estados, um palestino, outro israelita; ou um único Estado democrático onde todos têm os mesmos direitos; ou então, como acontece desde 1967, um só Estado, mas com dois tipos de cidadãos: uns de primeira, outros de segunda classe. Em 2018 Israel aprovou uma lei que afirma que o “direito de autodeterminação nacional no seio do estado de Israel é reservado somente ao povo judeu”. Com essa lei, chamada de “Israel Estado-nação do povo judeu”, o País abdicou do direito a ser considerado uma democracia liberal. Não é. É um regime de apartheid. Talvez não tao violento como o antigo regime da Africa do Sul mas, ainda assim, um regime que discrimina pela etnia. A limpeza étnica visa resolver esse problema. A limpeza étnica evita o incômodo político do apartheid.
Esta guerra em Gaza está a causar um enorme dano reputacional a Israel (e aos Estados Unidos, seu principal aliado) Quando era jovem olhava com admiração para o Estado de Israel, agora olho com a mais profunda amargura. Nos Estados Unidos, 56% dos eleitores democratas acham que Israel está a cometer genocídio e 27 porcento não têm a certeza. Impressionante. Todavia, bem vistas as coisas, de que outra forma podemos interpretar o que se está a passar? Quando matam tantos palestinianos civis o que pretendem? Quando não deixam entrar comida o que pretendem? Quando lhes destroem as casas o que pretendem? O que pretendem é expulsá-los. O que pretendem é correr com eles dali para fora. Não há solução política para Gaza? Há, sim senhor — chama-se limpeza étnica.
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