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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

Stalingrado: a batalha da humanidade

A violência brutal de Stalingrado lembra ao mundo do que somos capazes em tempos sombrios
02/02/2024 | 05h00

Soldados soviéticos atacando posições alemãs na Batalha de Stalingrado, 1943.

Enquanto os brasileiros se preparam para render homenagens à Rainha do Mar, Iemanjá, o historiador aqui, longe das riquezas de Salvador, mais uma vez se volta ao passado e lembra de outro emblemático 2 de fevereiro. Foi nesse dia, em 1943, que quase 100 mil alemães desesperados, liderados pelo Marechal Paulus, se renderam aos soviéticos na cidade de Stalingrado, às margens do rio Volga, numa luta cruel e sangrenta da resistência do Exército Vermelho (os soviéticos) às investidas dos nazistas. Stalingrado foi o ponto de virada da Segunda Guerra Mundial e o início da derrocada do domínio alemão nazista sobre praticamente toda a Europa.

Os números da batalha são assombrosos. Entre agosto de 1942 e fevereiro de 1943, mais de 2 milhões de militares e civis tombaram em Stalingrado. Local estratégico para acesso aos poços de petróleo da região do Cáucaso, era fundamental que o esforço de guerra alemão controlasse a cidade e, com ela, o controle da navegação sobre o rio Volga. Contudo, mesmo que tenham tomado a cidade depois de inúmeros bombardeios aéreos, o que se seguiu foi algo até hoje inexplicável. Stalingrado se tornou a síntese da guerra que mobilizava o mundo desde 1939. Mesmo diante da máquina de guerra alemã e seu cortejo triunfal de crueldades, panzers e blindados, os soviéticos fizeram da cidade uma trincheira de resistência jamais vista. Diante de escombros de oito metros de altura, fumaça e fogo, os soldados e civis — inclusive inúmeras mulheres no front de guerra — os soviéticos e soviéticas lutaram palmo a palmo pelas ruas, casas, fábricas, silos e armazéns. Em batalhas corporais violentas e brutais, os cadáveres se acumulavam nas casas e ruas destruídas e Stalingrado se tornava a mais sangrenta batalha da história de todas as guerras.

Atiradores de elite soviéticos, escondidos nos escombros, estouravam as cabeças de oficiais e soldados alemães, minando o ânimo dos mesmos. Vassili Zaitsev, retratado por Jude Law no filme “O círculo de fogo”, matou mais de 240 alemães com sua mira precisa. Sua entrega à causa da “Mãe Rússia” é um exemplo impressionante de como Josef Stalin promoveu uma campanha sem tréguas contra os nazistas, inclusive ordenando o fuzilamento imediato de qualquer soldado soviético desertor. O terror estava em toda parte e Stalingrado era o centro desse mundo. Não à toa, a batalha se tornou uma guerra pessoal entre Hitler e Stalin e determinou os rumos da história dali em diante.

Depois de duas ofensivas bem sucedidas dos soviéticos em novembro e dezembro de 1942, os alemães estavam cercados. Paulus tentou recuar, mas diante das ordens de seu tresloucado Führer, e de uma série de tentativas fracassadas de auxílios e resgates, o Marechal continuou até a rendição total em 2 de fevereiro de 1943. Congelados, repletos de doenças e morrendo de fome, mais de 91 mil soldados alemães capitularam. Menos de 5 mil sobreviveram. Stalingrado sepultava o alucinado sonho da expansão nazista e virava a guerra para o lado dos aliados. De 1943 até 1945, os socialistas soviéticos varreram os nazistas do leste europeu e foram os primeiros a chegar na capital alemã para mais uma batalha, a Batalha de Berlim, selando em definitivo a derrota de Hitler.

A violência de Stalingrado lembra ao mundo do que somos capazes em tempos sombrios. Stalingrado é uma advertência constante. Seus cadáveres ainda dizem: Por que toleramos a guerra, as tecnologias a serviço da morte? Por que passamos pano para o fascismo se sabemos qual o limite extremo de sua atuação? Por que punir desertores que querem apenas fugir do horror de tal violência? Por que toleramos as guerras e seus ditadores? Ao mesmo tempo, mesmo diante das brutais contradições do regime soviético, Stalingrado inspirou uma reinvenção da resistência, a ponto de ter feito o poeta maior escrever:

“A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate,
e vence.

As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.”

(A Rosa do Povo. Carlos Drummond de Andrade, 1945)

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