Por Valter Mattos da Costa*
Ser professor da rede pública no Brasil nunca foi fácil. Mas, nos últimos anos, a profissão tem se tornado um exercício extremo de resistência. O problema não está apenas nos baixíssimos salários — que, aliás, sequer são respeitados por estados e municípios, já que muitos não pagam o piso nacional do magistério. Dentro das salas de aula, a superlotação se soma a essa realidade, agravando ainda mais as condições de trabalho e o processo de ensino-aprendizagem.
No município do Rio de Janeiro, por exemplo, não é raro ouvirmos professores, pais e alunos relatarem que, frequentemente, há turmas com mais de 40 estudantes em uma sala de aula — realidade que também se repete em relatos de docentes em fóruns e grupos de discussão Brasil afora. Um absurdo. Mais de 40 adolescentes — que já são difíceis por natureza — em um único espaço, disputando a atenção de um professor que, mesmo sendo qualificado, não tem meios para oferecer um ensino de qualidade. Como garantir um aprendizado significativo em condições tão precárias?
A superlotação não é apenas um problema pedagógico, mas também um ataque à dignidade dos professores e estudantes. Em muitos municípios de clima quente e abafado (a maioria), onde a climatização ainda é um privilégio raro, dar aula se torna uma experiência torturante. Ventiladores, quando existem, não dão conta. O
barulho das turmas superlotadas dificulta a concentração e, em muitos casos, torna a comunicação inviável.
As resoluções oficiais tratam esses números como algo aceitável. Mas o que dizem as pesquisas? Estudos internacionais indicam que turmas menores resultam em maior aprendizado, melhor aproveitamento e menos evasão. Nos países mais desenvolvidos, o tamanho das turmas dificilmente ultrapassa 25 alunos. No Brasil, seguimos na contramão, ignorando os impactos negativos dessa política — ter mais de 40 alunos em sala não é uma exceção.
Curiosamente, os Ministérios Públicos agem rapidamente quando escolas descumprem os 200 dias letivos exigidos pela legislação federal, convocando autoridades a prestar esclarecimentos. Por que não adotam postura semelhante em relação às salas superlotadas, que prejudicam igualmente o direito à educação previsto em lei?
Paulo Freire nos ensinou que educação é diálogo, troca, construção coletiva. Como promover isso em uma sala onde metade dos alunos sequer consegue ser ouvida? O modelo atual da rede pública não educa, apenas administra o caos de corpos dentro de espaços apertados, como se a escola fosse um depósito humano.
Além do impacto no aprendizado, a superlotação sobrecarrega os professores. É impossível dar a atenção necessária a cada aluno, corrigir atividades com qualidade ou criar aulas dinâmicas. O cansaço se acumula. A saúde mental se deteriora. O desgaste emocional e físico leva ao adoecimento da categoria. Muitos
desenvolvem ansiedade, depressão e síndrome de burnout.
A questão disciplinar também se agrava. Lidar com adolescentes é desafiador em qualquer contexto, mas, em salas superlotadas, a indisciplina se multiplica. Não há tempo nem condições para construir um ambiente escolar saudável. O professor passa mais tempo tentando conter o caos do que ensinando.
A desigualdade educacional também se reforça. Pierre Bourdieu demonstrou como o sistema escolar reproduz as desigualdades sociais (impossibilitando o desenvolvimento do capital cultural em ambientes insalubres). Enquanto as escolas privadas garantem turmas reduzidas, ensino individualizado e
infraestrutura de qualidade, os estudantes da rede pública são submetidos a condições precárias. No fim, são cobrados da mesma forma nos vestibulares e no mercado de trabalho, como se tivessem tido oportunidades iguais.
O governo federal anunciou programas como “Mais Professores” e “Pé-de-Meia Licenciatura” para atrair novos profissionais ao magistério. Mas de que adianta trazer mais professores se as condições de trabalho continuam degradantes? Nenhuma política educacional séria pode ignorar a necessidade de reduzir o
número de alunos por sala.
Os alunos da rede pública não precisam apenas de professores qualificados, mas de espaço para aprender, de escolas estruturadas e de um ambiente propício ao ensino. O que temos hoje é uma educação de sobrevivência, onde estudantes e docentes lutam diariamente contra a negligência do Estado.
A desculpa da falta de recursos não se sustenta. Mais uma vez cito o município do Rio de Janeiro, que arrecada bilhões de reais, mas investe pouco na ampliação da rede de ensino. Novas escolas, e mais bem equipadas, poderiam ser construídas, professores concursados, e bem pagos, poderiam ser nomeados, turmas poderiam ser reduzidas. Mas isso exigiria um compromisso real com a educação, e não apenas discursos vazios em campanhas eleitorais.
O Ministro da Educação, Camilo Santana, anunciou que o reajuste do piso salarial dos professores passará a ser divulgado no meio do ano, em vez de janeiro, para que estados e municípios tenham tempo de adequar seus orçamentos. Embora essa mudança busque facilitar o planejamento financeiro das administrações, é crucial que não sirva de pretexto para postergar a implementação de reajustes justos e necessários, nem para desviar a atenção de problemas estruturais, como a superlotação das salas de aula e a falta de investimentos adequados na educação básica.
A educação pública brasileira caminha para um colapso. E não por falta de capacidade dos professores ou dos alunos, mas por políticas que sabotam a aprendizagem e destroem a dignidade de quem ensina. Não há ensino de qualidade sem condições mínimas de trabalho. Não há aprendizado sem espaço e estrutura. Não há futuro sem educação decente.
Enquanto a superlotação for tratada como normal, continuaremos condenando gerações inteiras a uma formação precária e injusta. Precisamos de mudanças urgentes. O que está em jogo não é apenas a carreira dos professores, mas o próprio destino do país.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.
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