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Tortura: ‘Minha mãe passou o resto da vida tentando esclarecer a morte do meu irmão’

Fernando Santa Cruz, irmão de Rosalina, foi preso político, desaparecido e morto em 1974 pela repressão da ditadura militar
26/06/2024 | 04h59

Por Gabriel Gomes*

Hoje é o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, data criada em 1997 pela Organização das Nações Unidas (ONU). No Brasil, muitas histórias de vida e famílias foram marcadas pela repressão e tortura no período da ditadura militar.

Uma dessas histórias é de Rosalina de Santa Cruz, pernambucana que foi presa pelo Deops do Rio de Janeiro no dia 3 de dezembro de 1971, ao lado de seu companheiro à época, em função de sua militância na VAR-Palmares.

Além de viver na pele os horrores da ditadura, Rosalina teve dois irmãos atingidos pela repressão. Um deles, Fernando Santa Cruz, foi preso político, desaparecido e morto em 1974.

Em entrevista ao ICL Notícias, Rosalina relembrou momentos de sua vida, da luta contra a ditadura, o desaparecimento do seu irmão e a preservação da memória nos dias atuais.

Indignação com a desigualdade social

As primeiras preocupações de Rosalina Santa Cruz com a desigualdade social brasileira se deram na época da escola. Ela, que relata ter sido criada com muita liberdade e formação política, foi levada pelas freiras do colégio em que estudava para visitar palafitas na cidade de Olinda, em Pernambuco.

“Elas me levaram para fazer catecismo em umas palafitas de Olinda e quando cheguei lá, fiquei impressionada em como as meninas da minha idade não tinham o que comer, o que vestir, e eu perguntei o porquê daquilo para as freiras e eles me disseram que era uma ‘vontade de Deus’. Eu comecei a levar roupinhas minhas, cesta básica, tudo que era possível eu levava pra lá”.

O impacto da desigualdade social diante dos olhos também impressionou os irmãos de Rosalina. A partir daí, eles começaram a militância no movimento estudantil ligado à Igreja Católica. “Isso também atingiu os meus irmãos e a partir daí, eu fui para a juventude estudantil católica e lá, eu fui compreendendo que aquilo não era destino de Deus, era da sociedade, e comecei a discutir”, diz ela.

“Isso nos influenciou muito a mim, meus irmãos e a posição do nosso pai, também, que nos deu essa liberdade de discutir essas questões”, completa Rosalina Santa Cruz.

Marcelo Santa Cruz

Com o golpe militar de 1964, os irmãos se empenharam na militância e luta contra o regime autoritário brasileiro. O primeiro da família a ser atingido pela repressão foi Marcelo Santa Cruz. O jovem estudante foi expulso da Faculdade de Direito do Recife por força do Decreto-Lei n.º 477, de 26 de fevereiro de 1969, que também ficou conhecido como “AI-5 do estudantes”

“Ele teve que sair do país e foi para Portugal. Pouco tempo depois, Portugal começou a não aceitar estudantes pelo decreto 477 e aí ele foi para a Bélgica. Lá, ele teve uma tuberculose trabalhando em uma fábrica para sobrevivência. Ele ficou três anos lá e quando voltou, se formou no Rio de Janeiro em uma universidade particular, não conseguiu voltar para a Universidade no Recife onde ele estudou”, conta Rosalina.

Prisão e tortura

Rosalina foi presa pela primeira vez em 1971 por sua atuação na luta contra a ditadura militar na Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, a VAR-Palmares. Ela foi presa junto com seu então companheiro.

Rosalina Santa Cruz foi presa pela primeira vez em 1971. Foto: Alesp

Ao todo, Rosalina passou um ano e um mês na prisão, onde foi torturada. “Passei, como todos nós passamos, por muitos tipos de tortura como a geladeira, que é uma coisa que todos que foram presos em 1971 passaram. Eu passei 1 ano e um mês presa. Eu passei por torturas muito cruéis, o choque elétrico e coisas que tem a reação pessoal nossa diante da tortura e dos torturadores. Depois dessa prisão, eu fui pra São Paulo respondendo inquérito e consegui trabalhar na prefeitura”.

Rosalina prestou um depoimento sobre a tortura sofrida à Comissão Nacional de Verdade. Veja:

Fernando Santa Cruz

Em 23 de fevereiro de 1974, o irmão de Rosalina, Fernando Santa Cruz, foi preso junto com o amigo de infância e companheiro de faculdade, Eduardo Collier Filho.

Fernando e Eduardo eram estudantes de Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. Atualmente, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFF carrega o nome de Fernando Santa Cruz. “Fernando tinha a vida legal, foi preso junto com Eduardo Collier, que também era estudante de Direito, os dois pernambucanos, os dois desapareceram”.

Fernando Santa Cruz, foi preso junto com o amigo de infância e companheiro de faculdade, Eduardo Collier Filho.. Foto: Comissão da Verdade São Paulo/ Divulgação

O desaparecimento de Fernando impactou diretamente toda a família de Rosalina. Ela, em decorrência da incansável busca por informações do paradeiro de seu irmão, foi novamente presa no dia nove de abril de 1974 e levada para o DOI-Codi/SP, onde foi torturada. Rosalina chegou a sofrer um aborto em decorrência das agressões.

“Meu pai morreu dizendo ‘Por que comigo?’, ‘Por que fizeram uma coisa dessas com meu filho?’ Meu pai teve um AVC, ficou super mal. Minha mãe passou o resto da vida dela, morreu com 105 anos, lutando para esclarecer as condições de morte do meu irmão e não sabemos. Estamos hoje ainda lutando por isso”, diz Rosalina.

Uma das pistas para o desaparecimento e a morte de Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier aponta que ambos foram levados para a Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana do Rio, e seus corpos levados posteriormente para incineração em uma usina de açúcar em Campos dos Goytacazes, no norte fluminense.

Casa da Morte, em Petrópolis, na região serrana do Rio

“Nós sabemos que meu irmão foi levado, não sei como e nem porque, para a Casa da Morte de Petrópolis e lá foi assassinado. Isso foi dito pela própria repressão, quem disse foi o Cláudio Guerra que o Fernando e o Eduardo foram levados para a Casa da Morte”.

“O Cláudio Guerra disse, em depoimento, que levou os corpos deles, mortos e endurecidos, para botar no forno da usina em Campos dos Goytacazes. No depoimento, ele conta como jogava os corpos endurecidos. O dono da usina recebia benefícios financeiros para queimar esses corpos. Se não incinerasse naquele momento, a gente acharia nos cemitérios clandestinos e jogar no mar era muito difícil”, completa Rosalina.

Quando foi preso, Fernando Santa Cruz tinha um filho de, na época, um ano e dez meses. “Meu irmão andava orgulhoso com o filho pela mão”, relata Rosalina.

O filho, Felipe Santa Cruz, se tornou, anos depois, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Em 2019, Felipe foi alvo de ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Se o presidente da OAB quiser saber como o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele“, disse Bolsonaro. Na mesma época, Jair deu declarações infundadas de que o militante teria sido morto por colegas da organização de esquerda.

Memória

Neste ano, em que o golpe militar que implantou a ditadura no Brasil completou 60 anos, Rosalina reforça a necessidade de se relembrar constantemente os crimes e barbáries cometidos pela repressão.

“A gente tem que lembrar, marcar nossa história. Essa é a história do nosso país, não pode ficar só entre nós, da América Latina. A nossa Comissão da Verdade foi feita obrigada porque a Corte Internacional obrigou que fosse feita . Até quem mora em Petrópolis, não sabe que existia a Casa da Morte, por exemplo. Isso é um absurdo! Essa é a nossa história”.

“A gente está envelhecendo, essa nossa geração que passou por isso está envelhecendo, é importante que a juventude brasileira assuma isso. É um absurdo que a gente tenha uma Câmara reacionária, conservadora, de direita que é capaz de agredir uma pessoa como Luiza Erundina, que quer propor que tenha uma placa em todos os lugares que tiveram tortura no Brasil”, afirma Rosalina.

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