Por Lucas Leite*
A recente guinada da política externa dos Estados Unidos sob o novo governo de Donald Trump representa um golpe severo para a Ucrânia e um reposicionamento estratégico que beneficia a Rússia.
Desde o início da guerra em 2022, muitos pesquisadores alertaram que uma resolução duradoura do conflito só poderia ser alcançada por meio de negociações que levassem em conta os interesses de Moscou. Ainda assim, durante os últimos anos, a postura predominante do Ocidente foi de um apoio incondicional ao governo de Volodymyr Zelensky e de uma retórica intransigente contra qualquer concessão territorial ou política à Rússia.
Agora, com Trump na Presidência, o cenário se reconfigura drasticamente. O novo mandatário norte-americano tem deixado claro que não considera Zelensky um líder legítimo, chamando-o de ditador e deslegitimando sua capacidade de governar e defender os interesses do povo ucraniano. A consequência direta disso é o enfraquecimento do governo de Kiev, que se vê cada vez mais isolado no tabuleiro geopolítico.
A mudança de postura de Washington não apenas mina a credibilidade de Zelensky, como também evidencia o desprezo de Trump pelos quase 200 bilhões de dólares investidos pelos EUA na defesa da Ucrânia. Em vez de sustentar essa política de apoio, Trump declara abertamente que não pretende continuar despejando recursos na região — e tampouco em outras partes do mundo.
O desdobramento mais significativo dessa mudança é a aproximação de Trump com Vladimir Putin. O republicano, que já demonstrava simpatia pelo líder russo em seu primeiro mandato, agora busca um entendimento direto com Moscou para estabelecer os termos da paz. Contudo, a grande questão é que tais negociações ocorrem sem a presença da Ucrânia, tornando-a mero espectador de sua própria sorte.

Um militar ucraniano opera um tanque perto de Pokrovsk, na região de Donetsk, em 11 de dezembro de 2024. – Roman Pilipey/AFP
Esse cenário significa que Kiev terá de aceitar os termos impostos por Washington e Moscou, o que pode resultar em perdas territoriais e compromissos políticos humilhantes.
A Europa, por sua vez, também se vê pressionada a ceder. Com um conflito prolongado que eleva o preço da energia e dos insumos essenciais para sua economia, o bloco europeu pode acabar aceitando um acordo que favoreça a Rússia, desde que isso signifique o fim das sanções e a retomada do fornecimento de gás e outros produtos estratégicos. Com a União Europeia voltando-se para seus próprios interesses, a Ucrânia se torna ainda mais vulnerável à nova ordem imposta por Trump e Putin.
A situação coloca a própria OTAN em xeque. Com os EUA se afastando do conflito e da segurança europeia, países como Alemanha e França começam a repensar seus gastos com Defesa. Em 2023, a Alemanha anunciou um fundo especial de 100 bilhões de euros para modernizar suas forças armadas, enquanto a França aumentou seu orçamento militar para 413 bilhões de euros até 2030.
A dependência da Europa dos EUA para sua segurança se torna cada vez mais insustentável, levando líderes europeus a discutir estratégias de autonomia e reforço da defesa coletiva do continente.
Além disso, a reconfiguração do conflito tem impactos diretos sobre a população ucraniana. De acordo com a ONU, mais de 6 milhões de ucranianos se tornaram refugiados desde 2022, espalhando-se pela Europa e outras regiões do mundo.
O custo humano da guerra é alarmante: estima-se que mais de 300 mil soldados ucranianos e russos tenham morrido desde o início das hostilidades, enquanto ataques a cidades continuam ceifando vidas civis e destruindo infraestrutura essencial. A possível retirada dos EUA do conflito deixa a Ucrânia ainda mais vulnerável a ataques massivos e a uma eventual ofensiva russa ainda mais destrutiva.
Política externa de Trump: controvérsias nos EUA
Internamente, nos Estados Unidos, a mudança na política externa de Trump também gera controvérsias. Enquanto setores da ala republicana apoiam sua decisão de cortar o financiamento à Ucrânia, os democratas e até mesmo alguns aliados tradicionais dos republicanos alertam para as consequências desse isolamento estratégico.
O temor é de que a credibilidade dos EUA como potência global sofra um golpe irreparável, abrindo espaço para que outras potências, como China e Rússia, fortaleçam suas zonas de influência. Além disso, especialistas apontam que o setor de defesa norte-americano, que lucrou significativamente com o fornecimento de armas para Kiev, pode pressionar o Congresso para reverter parte dessas decisões.

O presidente da Ucrânia Volodymyr Zelesnki (Foto: Serviço de Imprensa da Presidência da Ucrânia)
A economia global também sente os impactos desse novo arranjo geopolítico. A guerra já havia elevado os preços do petróleo e do gás natural, forçando países europeus a buscar alternativas energéticas caras e aumentando a inflação. O trigo, uma das principais exportações da Ucrânia, também se tornou mais caro, impactando cadeias produtivas em diversas regiões do mundo, principalmente na África e no Oriente Médio.
Se Trump seguir adiante com sua postura de desengajamento, a incerteza econômica pode se aprofundar, levando a novos desafios para os mercados globais.
Mas Trump não para por aí. Ao mesmo tempo em que esvazia o apoio à Ucrânia, ele impõe novas condições para a sobrevivência econômica e política do país. A mais evidente delas é a exigência de acesso quase irrestrito às terras raras ucranianas, um recurso estratégico fundamental para a indústria de tecnologia e defesa dos Estados Unidos. Dessa forma, Trump não apenas enfraquece a posição de Kiev na guerra, como também explora seus recursos naturais em benefício direto da economia norte-americana.
No fim das contas, a postura de Trump reconfigura completamente o conflito. A guerra, que já era um campo de disputa de interesses globais, agora se torna um jogo de poder no qual autocratas se reconhecem, se admiram e negociam entre si, deixando de lado qualquer preocupação com a soberania ucraniana.
O pragmatismo cínico da nova administração americana transforma a Ucrânia de bastião da resistência ocidental a um território explorado e descartável, cujo destino será decidido sem sua participação. O que parecia um embate ideológico entre democracia e autoritarismo se revela, no fim, um rearranjo de interesses entre aqueles que realmente mandam no jogo geopolítico.
* Professor-adjunto de Relações internacionais da FAAP, atualmente conduz pesquisa de pós-doutorado em História da Política Externa dos Estados Unidos na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). É doutor em Relações Internacionais PPGRI San Tiago Dantas (UNESP/UNICAMP/PUCSP)
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