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Andrea Dip

Jornalista investigativa e estudante de psicanálise. Autora do livro-reportagem “Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder". É pesquisadora na Freie Universität de Berlim e apresenta o podcast Pauta Pública na Agência Pública de Jornalismo Investigativo.

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Administração Trump pode apoiar iniciativas golpistas e antidemocráticas

Em entrevista à coluna, David Magalhães reflete sobre rumos da extrema direita brasileira pós eleições norte-americanas
13/11/2024 | 05h00

A direita brasileira e o bolsonarismo estão em reconfiguração e preparações para 2026. Após eleições municipais que dividiram e enfraqueceram o campo, a volta de Donald Trump à Casa Branca parece ter renovado as esperanças de extremistas sobre uma possível revogação da inelegibilidade de Bolsonaro e anistia aos golpistas do 8 de janeiro.

Em uma live em seu perfil no Instagram, ao lado de Eduardo Bolsonaro, o ex-ministro de Bolsonaro Gilson Machado Neto comemorou que a vitória dava esperanças de que Jair pudesse voltar em 2026. “O que acontece nos Estados Unidos acontece no Brasil”, dizia Machado, sobre o fato de que Trump foi novamente eleito mesmo com dezenas de acusações de crimes em diferentes processos judiciais.

Bolsonaro também tem se mostrado inspirado e até escreveu um texto para o jornal Folha de S. Paulo, pervertendo mais uma vez o significado de democracia.

Em entrevista à coluna, o professor de Relações Internacionais e coordenador do Observatório da Extrema Direita, David Magalhães, reflete sobre o futuro da extrema direita global com Trump na Casa Branca, explica o que de fato pode mudar e diz que vitória tende a fortalecer mensagens de ódio contra imigrantes, comunidade LGBTQIA+ e a apologia a práticas autoritárias.

“Vale lembrar que, sob o governo de Joe Biden, a diplomacia dos Estados Unidos desempenhou um papel fundamental nos bastidores da política brasileira, pressionando autoridades a respeitarem o Estado de Direito e minimizando as possibilidades de golpe durante o governo Bolsonaro. Esse posicionamento visava proteger as relações internacionais do Brasil. Em contraste, uma administração Trump poderia apoiar iniciativas golpistas e antidemocráticas” diz David.

A direita brasileira parece estar em reconfiguração. Durante as eleições municipais algumas figuras tentaram se afastar do bolsonarismo, tivemos Pablo Marçal que “dividiu” a extrema direita, Tarcísio de Freitas (Republicanos) e Ricardo Nunes (MDB) querendo se colocar como menos radicalizados, só pra citar alguns exemplos. Agora, com a eleição de Trump, parece que isso muda de novo. Pode falar sobre isso?

Sim, tenho argumentado que a ausência de um partido de direita orgânico e ideológico no Brasil tem deixado os diversos fragmentos, tendências e grupos direitistas dependentes de lideranças carismáticas.

Esse tipo de liderança emergiu durante as grandes manifestações, na figura de Bolsonaro, e se fortaleceu até o ponto em que ele próprio começou a enfraquecer. Com sua derrota, abriu-se um vácuo para que uma nova liderança carismática tentasse capitalizar e unificar as diversas vertentes da direita no Brasil.

Nesse contexto, Marçal, mesmo atuando em nível municipal, conseguiu conquistar parte desse campo de direita, especialmente ao adotar uma postura antissistema e uma retórica claramente populista.

Ele se posicionou contra o bolsonarismo, que descreveu como uma direita que se rendeu ao establishment político. Essa postura conferiu-lhe uma imagem de novidade, a ponto de lançar-se como possível candidato para as eleições de 2026.

Então essas oscilações de liderança refletem a dependência do Brasil em relação a figuras carismáticas para organizar a direita, algo que difere de outros países, nos quais partidos como o Republicano, nos Estados Unidos, ou o Conservador, no Reino Unido, desempenham esse papel de maneira mais estruturada.

De que forma você acha que a vitória de Trump influencia a extrema direita brasileira e latino-americana?

Entendo que a vitória de Trump tende a fortalecer a direita radical na América Latina de várias maneiras. Primeiro, do ponto de vista simbólico, a presença de um governo que, diariamente, dissemina mensagens de ódio contra a imigração e a comunidade LGBTQIA+, desumaniza mexicanos e muçulmanos e faz apologia a práticas autoritárias, contribui para normalizar esses discursos em um contexto mais amplo.

Após quatro anos promovendo essas posturas, mais quatro anos de governo podem intensificar a aceitação dessas posições contrárias aos direitos das minorias, que são centrais para a agenda da direita radical.

Além do aspecto simbólico e da normalização desses discursos, há também o apoio explícito que o governo americano pode oferecer, mobilizando recursos políticos, econômicos e diplomáticos para apoiar organizações, governos e partidos de direita radical na região. Por exemplo, a eleição de Javier Milei na Argentina encontra um importante aliado com Trump no poder a partir de 2025. O mesmo se aplica a Bukele [presidente de El Salvador], que também deve receber apoio político, diplomático e econômico de Trump.

Organizações como o CPAC provavelmente serão revigoradas como espaços transnacionais de articulação da direita radical.

Vale lembrar que, sob o governo de Joe Biden, a diplomacia dos Estados Unidos desempenhou um papel fundamental nos bastidores da política brasileira, pressionando autoridades a respeitarem o Estado de Direito e minimizando as possibilidades de golpe durante o governo Bolsonaro. Esse posicionamento visava proteger as relações internacionais do Brasil. Em contraste, uma administração Trump poderia apoiar iniciativas golpistas e antidemocráticas.

Assim, desde a normalização dos discursos da direita radical até o apoio diplomático, econômico e material, a volta de Trump ao poder nos Estados Unidos tem grande potencial de fortalecer a direita radical na América Latina.

Você acha que a extrema direita global também sai fortalecida com essa vitória?

Acredito que, de fato, a direita radical global se fortalece com essas eleições. A vitória de Trump foi celebrada por figuras como Viktor Orbán, Giorgia Meloni e Nigel Farage, entre outros. Além do aspecto de normalização já mencionado, há também a expectativa de apoios políticos, diplomáticos e até econômicos que devem ser considerados.

Podemos lembrar, por exemplo, da atuação de Steve Bannon nas eleições brasileiras de 2018, apoiando diretamente Bolsonaro e mantendo relações próximas com sua família por meio de Eduardo Bolsonaro e figuras próximas, como Filipe Martins. As consequências dessa aliança transnacional foram significativas para a direita radical no Brasil.

Outro ponto importante são as próximas eleições na Alemanha, possivelmente no início do ano, dadas as dificuldades do governo alemão em manter sua maioria. No cenário pós-vitória de Trump, é provável que o AfD (Alternativa para a Alemanha) ganhe ainda mais espaço. Além disso, a ascensão de Trump pode dar um novo fôlego ao governo de Orbán, que enfrenta um momento de instabilidade após mais de uma década no poder.

As posições de Trump sobre a ordem internacional, sua crítica às Nações Unidas e sua oposição a posturas amplamente defendidas pela comunidade internacional tendem a abrir ainda mais espaço para uma direita iliberal e eurocética na Europa, que tem avançado consistentemente no Parlamento Europeu ao longo da última década.

Os bolsonaristas estão confiantes de que a justiça brasileira seguirá a norte-americana e irá derrubar a inelegibilidade de Bolsonaro. Entre as estratégias estariam compor maioria no Senado e na Câmara para mexer no STF e a esperança de que Trump interfira para anistiar os golpistas de 8 de janeiro, derrubar a inelegibilidade e intervir nas questões de Musk com o X. O quanto disso você acha possível e o quanto é delírio?

Não acredito que essa mudança de conjuntura nos Estados Unidos, somada à pressão de parlamentares e do grupo bolsonarista, seja capaz de reverter a inelegibilidade de Bolsonaro. É possível que haja uma mudança de entendimento sobre o seu caso no judiciário, mas considero essa possibilidade pouco provável.

Qual é o significado da carta de Bolsonaro à Folha, neste momento, na sua opinião?

Não é de hoje que a direita radical se apropria e redefine termos como liberdade, progresso e democracia — exatamente como Bolsonaro faz em seu artigo publicado na Folha de S. Paulo.

Esses grupos atuam dentro de um ambiente de extremo relativismo em relação a esses conceitos, em um contexto de “guerra cultural,” onde diferentes concepções de democracia entram em conflito. Essa postura polariza o debate no clássico formato de “nós contra eles”, o que alguns autores têm chamado de “pós-modernismo linguístico” da direita radical.

Trata-se de um relativismo que, no passado, era até associado ao discurso foucaultiano de certos segmentos da esquerda. A ideia é que não seria possível definir de forma minimamente objetiva o que é democracia e que esses termos estão sendo usados em um contexto metapolítico, transcendendo a ação política direta e se concentrando na batalha cultural e na disputa entre diferentes definições.

Há uma ironia evidente no fato de que o artigo foi publicado pela Folha de S. Paulo, que, junto com outros veículos de jornalismo profissional, foi duramente atacada durante o governo Bolsonaro. É justamente a Folha que agora abre espaço para que ele relativize o conceito de democracia e se apresente como defensor dela. Considero uma decisão equivocada da Folha de S. Paulo abrir espaço a uma figura que tomou tantas medidas antidemocráticas durante seu mandato para que ele possa, agora, se colocar como um defensor da democracia.

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