Mal tomou posse, em 2009, Barack Obama proibiu o uso de tortura em prisoneiros de guerra, anulou todas as normas e opiniões legais relativas ao interrogatório de prisioneiros e divulgou os chamados “memorandos de tortura”. Foi assim que ficamos a saber que a tortura não era o último recurso e que o detido só tinha uma oportunidade de colaborar antes de começar o tormento. Foi assim que soubemos que um detido foi mantido acordado por sete dias e sete noites. Foi assim que soubemos que Khalid Sheikh Mohammed foi vítima de simulação de afogamento (“waterboarding”) por 183 vezes em apenas um mês. Esta foi a parte boa. Dez dias depois, Obama diria que “devemos olhar para a frente e não para trás”. O encobrimento tinha começado.
Para sermos justos com Obama devemos reconhecer que a situação era politicamente delicada — a conspiração para torturar ia até ao cimo do governo e a tortura tinha o apoio da maioria do povo americano. Ainda assim, o resultado desta política foi a desresponsabilização geral. Os tribunais, vergonhosamente, aceitaram o argumento de que as queixas das vítimas não poderiam prosseguir porque exigiam a apresentação de “informações sensíveis” que punham em causa a “segurança nacional”. Ainda hoje o Estado norte-americano paga um preço moral na sua reputação internacional em consequência desta política de desresponsabilização.
Logo no início da nova administração, o procurador-geral Eric Holder disse ao presidente: “se não libertar os memorandos, você torna-se o dono da política”. Talvez seja um pouco exagerado, mas é isto exatamente que penso quando reflito na monstruosidade do alegado plano de golpe de Estado que agora foi revelado no Brasil — se o Estado brasileiro não responsabilizar os seus autores não apenas se torna cúmplice, mas dono da política que contemporiza com golpes de força contra a ordem democrática. Bem vistas as coisas, este é o dilema político com que as instituições brasileiras estão confrontadas — se ignoram o que foi agora revelado pela Polícia Federal, se não levam até ao fim as investigações e os procedimentos criminais contra os alegados autores do plano, tornam-se elas próprias responsáveis pela política anterior que planejou o golpe contra os vencedores das eleições (carecendo, claro está, de prova a ser produzida em tribunal).
Na verdade, já vimos isto acontecer. Já vimos o resultado da anistia dos crimes da ditadura militar. Já vimos o desfecho desta política de “olhar para a frente e não para trás”. Já vimos as consequências. Para mim, que sempre fui a favor de formas políticas de apaziguamento e de reconciliação em momentos de fratura social grave, a monstruosidade do que agora foi revelado não pode deixar de ser condenado pelo poder político nem ignorado pelo poder judicial. A inação do governo, do Parlamento e dos tribunais significaria aquiescência, senão mesmo aprovação do golpe para derrubar a democracia. O Estado brasileiro não tem agora alternativa. Não vejo uma terceira via. Gostava que existisse, mas não existe. De forma breve, é assim que vejo as coisas: desresponsabilizar os autores torna todo o Estado brasileiro (quem estava antes no poder e quem está agora) em autor moral do golpe planejado. Esta é a dura realidade.
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