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Uma corrida contra o tempo: a crise de segurança pública no Brasil

Lidar com questões de segurança pública não é um feito singular, mas sim um processo complexo
07/02/2024 | 13h47

Por Fabrício Mendes Fialho* e Cesar Calejon** para o OXPOL — The Oxford University Politics Blog

De acordo com uma recente pesquisa nacional sobre criminalidade e vitimização no Brasil, mais de 50% dos entrevistados relataram ter sido assaltados pelo menos uma vez, enquanto 85% conhecem pelo menos uma outra pessoa que foi vítima do mesmo crime. Dados do Latinobarómetro de 2023 mostram que 59% dos entrevistados brasileiros estão preocupados “o tempo todo” em se tornarem vítimas de um crime. Estes números alarmantes são apenas a ponta do iceberg quando se trata de crime e violência no maior país do hemisfério sul.

Os resultados da mais recente pesquisa nacional da Confederação Brasileira do Transporte (CNT), realizada em meados de janeiro de 2024, indicam claramente a segurança pública como o principal desafio a ser enfrentado por Lula no seu terceiro mandato.

De acordo com a pesquisa da CNT, 27,4% dos entrevistados consideram a segurança pública a área em que a atual administração tem o pior desempenho, seguida pela economia (25,4%), saúde (22,4%), combate à corrupção (21%) e educação (12,6%). Além de a segurança pública estar no topo desta lista infame – e provavelmente ter as maiores consequências nas próximas eleições – a percepção geral é que o tratamento dado pelo governo federal a esta questão piorou.

Numa pesquisa da CNT realizada em janeiro de 2020, durante o primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro, apenas 14,5% dos entrevistados consideraram a segurança pública como um dos piores desempenhos do governo federal. Com uma “taxa de desaprovação” em matéria de segurança pública quase duas vezes superior a do seu antecessor na mesma altura do seu mandato presidencial, muitos comentadores políticos especulam que o crime e a violência serão o calcanhar de Aquiles de Lula.

Com importantes eleições locais marcadas para outubro de 2024 — as primeiras desde que o populista de extrema direita Jair Bolsonaro deixou a Presidência — a coligação de centro-esquerda liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula da Silva deve correr contra o tempo para cumprir políticas de segurança pública e evitar uma recuperação radical da direita. Dada a gravidade da crise de segurança pública, o desempenho econômico favorável da atual administração pode não ser suficiente para o sucesso eleitoral no nível nacional nas eleições.

Dada a recente nomeação do ex-juiz do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, como novo Ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil, a questão deverá estar no centro das próximas eleições de outubro. O eventual fracasso do Partido dos Trabalhadores em resolver a crise de segurança pública do Brasil teria implicações significativas para o futuro da democracia do país. Jair Bolsonaro e a extrema-direita brasileira irão, sem dúvida, capitalizar a questão, enfatizando a necessidade de um governante forte com mão de ferro. Tal estratégia de campanha poderia gerar amplo apoio social e político, estimulando outra rodada de motins, como os que ocorreram em 8 de janeiro de 2023, quando milhares de extremistas de extrema direita invadiram e vandalizaram o Congresso Nacional do Brasil.

CRIMES CONTRA A PROPRIEDADE, UMA AMEAÇA COTIDIANA

O Relatório Anual de Segurança Pública Brasileira 2023 (BPSA) revela a gravidade desse cenário de segurança pública. Só em 2022, foram registados 373.225 roubos de veículos no país, um número 8% superior ao registado em 2021. Cerca de um milhão de celulares foram roubados em 2022, um número 16% superior ao registado no ano anterior.

A fraude representa uma categoria à parte. Cerca de 1,8 milhão de fraudes realizadas ou tentadas foram denunciadas às autoridades locais em 2022: número 38% superior ao do ano anterior e um aumento de quatro vezes em comparação com 2018. Em média, foram registados 207,7 casos por hora em 2022.

Durante o lockdown da Covid-19, vários países testemunharam uma redução na criminalidade, incluindo o Brasil. Hoje, porém, a incidência de crimes como furtos e roubos parece estar de volta aos níveis anteriores à Covid. O aumento constante da utilização da internet durante a pandemia pode explicar o aumento da fraude, com mais transações a serem realizadas online, juntamente com uma maior exposição a phishing e outras fraudes online.

MAIS HOMICÍDIOS INTENCIONAIS DO QUE VÍTIMAS NUMA GUERRA CIVIL

O número de mortes violentas no Brasil rivaliza com o de países devastados pela guerra. Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o Brasil foi o país líder mundial em números absolutos de homicídios dolosos em 2021, com 45.562 casos registrados, notavelmente superior à Índia, que registrou 41.330 casos apesar de ter uma população 6,5 vezes maior. O ano de 2021 não foi uma exceção: o Brasil registrou mais homicídios intencionais do que seus parceiros do BRICS ao longo do século 21. Surpreendentemente, os 45 mil homicídios em 2021 marcaram uma redução significativa em relação a 2017, quando 63.788 brasileiros foram assassinados.

Figura 1. Número absoluto de homicídios dolosos no Brasil, 2001–2021. Nota: Os números da Argentina, França, Índia, Rússia e Estados Unidos são apresentados para comparação. Fonte: Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Elaborado pelos autores.

Apesar de uma redução de 2,4% nos homicídios dolosos entre 2021 e 2022, a taxa de homicídios dolosos no Brasil continua a ser uma das vinte mais altas do mundo – acima de 20 por 100.000 habitantes desde 2001, de acordo com o UNODC. Este número é cerca de três vezes superior ao da Rússia e dos Estados Unidos, cinco vezes superior ao da vizinha Argentina e vinte vezes superior ao da França.

Figura 2. Taxa de homicídios dolosos por 100 mil habitantes no Brasil, 2001-2021. Nota: Os números da Argentina, França, Índia, Rússia e Estados Unidos são apresentados para comparação. Fonte: Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime. Elaborado pelos autores.

A violência letal no Brasil se assemelha a um cenário de guerra civil. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, 162.390 civis e 340.674 não-civis foram mortos desde o início da guerra civil, entre março de 2011 e março de 2023, totalizando 613.000 mortos. No Brasil, 601.716 pessoas perderam a vida violentamente entre 2011 e 2021, de acordo com o UNODC, enquanto a BPSA relatou 47.398 homicídios intencionais em 2022, 76% dos quais foram causados por armas de fogo. O Brasil está testemunhando um conflito armado não declarado?

PERCEPÇÕES DE INSEGURANÇA NA OPINIÃO PÚBLICA

Sondagens recentes captam o profundo sentimento de insegurança do público. De acordo com a Pesquisa Social Brasileira 2023 (Pesquisa Social Brasil 2023, PESB), dois terços dos entrevistados acreditam que a criminalidade aumentou no país e 44% relataram que a criminalidade aumentou em suas cidades no último ano. Quase metade dos inquiridos (48,5%) acredita que existe uma probabilidade “elevada” ou “muito elevada” de ser roubado. O AmericasBarometer de 2016 documentou que 71% dos entrevistados estavam “muito” ou “um pouco” preocupados com a possibilidade de serem agredidos no transporte público.

Em meio a uma crise de segurança pública, a maioria dos brasileiros não acredita na capacidade das forças policiais de protegê-los. Embora mais da metade dos inquiridos do PESB acreditarem que a polícia é bem intencionada (55%) e competente (58,5%), também acreditam que está mal equipada (52%) e despreparada (52%). O governo é visto como proporcionando condições de trabalho insuficientes (56%) e não paga o suficiente às forças policiais (68%), enquanto oito em cada dez (78%) entrevistados acreditam que a polícia não tem pessoal suficiente.

ELEIÇÕES MUNICIPAIS

As eleições municipais são cruciais para a formação de alianças políticas no Brasil, pois estabelecem o apoio popular — através de aliados políticos locais e comícios de campanha — para as eleições nacionais, que deverão ocorrer dois anos depois. A vitória estreita de Lula sobre Bolsonaro, em 2022, por uma margem de 2%, sinaliza uma importância sem precedentes das eleições municipais em 2024, prevendo-se que a segurança pública seja uma questão central.

Apesar da sua retórica de lei e ordem, a candidatura presidencial bem-sucedida de Bolsonaro em 2018 foi acompanhada por um manifesto repleto de propostas políticas vagas, como “tolerância zero contra o crime”. Não foi surpreendente que a sua administração tenha apresentado uma política anti-crime vazia. Isto não sugere, contudo, que as questões de segurança pública sejam facilmente abordadas por outras forças políticas.

O Brasil segue uma tendência crescente nas democracias globais de o crime ser usado como arma pela direita para atacar as falhas políticas de grupos progressistas. Além disso, as forças policiais do Brasil — nomeadamente a polícia militarizada no nível estatal, responsável pelo patrulhamento e pela primeira resposta — são historicamente suspeitas de políticas de centro-esquerda. Como observou recentemente Leonel Radde, ex-policial que se tornou representante do Partido dos Trabalhadores, “parece que sou demasiado esquerdista para a polícia e demasiado polícia para a esquerda”. Dada a adesão de muitos agentes policiais ao bolsonarismo, colmatar a lacuna política não será uma tarefa trivial para o Partido dos Trabalhadores de Lula.

Lidar com questões de segurança pública não é um feito singular, mas sim um processo complexo, e há sinais de que o governo federal liderado pelo PT está consciente do desafio monumental que enfrenta. A administração lançou recentemente o aplicativo Celular Seguro, que permite aos proprietários de telefones celulares bloquear e desabilitar rapidamente um dispositivo roubado, com o objetivo de reduzir o roubo de telefones celulares. Caso seja eficaz, o aplicativo poderá ter um impacto positivo na opinião pública, dada a ocorrência generalizada deste crime.

No entanto, em várias questões políticas conexas, está pendente o consenso político. Um recente decreto presidencial que aprova parcerias público-privadas no sistema prisional e na reforma da segurança pública suscitou controvérsias, tanto entre o público como entre a atual administração. O Dr. Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos, argumentou que tal parceria poderia sair pela culatra na política anticrime do governo, ao capacitar, em vez de combater, o crime organizado.

Uma estratégia política abrangente e de longo prazo — que inclua mecanismos de responsabilização externa urgentemente necessários, maior comando e controle civil sobre as forças policiais, uma revisão drástica da política de encarceramento em massa e da política antidrogas, bem como uma reavaliação do artigo 144 da Constituição Federal do Brasil (que regulamenta assuntos de segurança pública) — ainda não foi estabelecido. Mesmo que o PT implementasse tal estratégia, os seus efeitos sobre o sucesso eleitoral do partido permaneceriam longe do domínio da especulação. Uma coisa, porém, é certa: a incapacidade de abordar de forma eficaz e rápida as ameaças criminais enfrentadas pelos cidadãos comuns pode deixar a porta aberta para uma extrema-direita revigorada que culpará “a esquerda” pela espiral de violência. Negligenciar esta questão levará a um preço elevado — em propriedades e em vidas — a pagar.

 

Os autores agradecem ao Dr. Alberto Carlos Almeida pela permissão para utilização dos dados do PESB 2023.

Nota: Este artigo reflete a opinião dos autores e não a posição do DPIR ou da Universidade de Oxford.

 

*Fabrício Mendes Fialho

Fabrício Mendes Fialho é pesquisador do Atlantic Fellows for Social and Economic Equity e do LSE International Inequalities Institute. É especialista em psicologia política e métodos estatísticos aplicados às ciências sociais. A sua investigação atual centra-se no autoritarismo, conservadorismo e populismo a partir de uma perspetiva comparativa Norte-Sul Global. Ele possui doutorado em Ciência Política e mestrado em Estatística pela Universidade da Califórnia, Los Angeles.

**Cesar Calejon

Cesar Calejon é jornalista com mestrado em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo e especialista em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas. É comentarista político do Instituto Conhecimento Liberta. Cesar publicou quatro livros sobre a política brasileira, “Esfarrapados” é o mais recente.

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