Nesta seção, o portal ICL Notícias vai resgatar textos, imagens e sons que façam o leitor dar uma pausa na marcha imediata e angustiante dos fatos, para refletir com autores geniais, tanto do Brasil quanto de outros países.
Hoje, publicamos uma crônica da genial escritora Clarice Lispector. O original estampou uma das páginas do Jornal do Brasil no dia 7 de agosto de 1971:
Você é um Número
Se você não tomar cuidado, vira um número até para si mesmo. Desde o instante em que você nasce, classificam-no com um número. Sua identidade no Instituto Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando, você também é. Para ser motorista, tem carteira com número e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de casa, seu número de apartamento – tudo é número.
Se você parar um pouco e pensar, vai também encontrar outros números na sua vida, como por exemplo: a data do aniversário, número de anos de vida que você tem, o número do sapato que calça, o número de filhos que tem ou o número de irmãos. Na escola, você também tem um número de matrícula.
Se você é dos que abrem crediário, para eles você também é um número. Se tem propriedades, também. Se é sócio de um clube, tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras, tem número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas de Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre esse mundo dos números.
Se você é comerciante, seu Alvará de Localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência, também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio, recebe um número. Se possui ações, também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico, recebe número de batismo. No registro civil ou religioso, você é numerado. Se possui personalidade jurídica, tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica.
Nós vamos lutar contra isso. Cada um é cada um, sem número. O si – mesmo é apenas o si – mesmo.
E Deus não é número.
Vamos ser gente, por favor? Nossa sociedade está nos deixando secos como um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol. Meu número íntimo é 9. Só. 8. Só 7. Sem somá-los nem transformá-los em novecentos e oitenta e sete. Estou me classificando com um número? Não, a intimidade não deixa. Veja, tentei várias vezes na vida não ter um número e não escapei. O que faz com que precisemos de muito carinho, de nome próprio, de genuinidade. Vamos amar que o amor não tem número. Ou tem?
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Clarice Lispector é uma escritora brasileira. Ela nasceu na Ucrânia, mas chegou ao Brasil quando tinha dois anos de idade. Mais tarde, fez faculdade de Direito, morou em diversos países em companhia do marido cônsul, publicou muitos livros e também atuou como jornalista.
A autora, que faleceu em 9 de dezembro de 1977, no Rio de Janeiro, faz parte da terceira geração modernista (ou pós-modernismo). Suas obras apresentam fluxo de consciência, fragmentação e metalinguagem, características que podem ser observadas em A hora da estrela, um de seus livros mais conhecidos.
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