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Uma temporada na China (II): memórias de um professor

Os olhares-pura-dúvida dos estudantes me levaram a reavaliar todos os cursos que ofereci na China
12/01/2024 | 13h59

Por João Cezar de Castro Rocha

A CENTRALIDADE DA TRADUÇÃO

No final do primeiro artigo dedicado à experiência que tive na Universidade Normal de Hunan (UNNH), na cidade de Changsha, no sul da China, deixei uma pergunta sem resposta: “O que eu aprendi com as dúvidas dos estudantes?”

Desta vez, recordo o curso que ensinei de cultura latino-americana, centrado na tradição do ensaio de reflexão sobre a identidade do continente. Dois textos clássicos foram lidos na íntegra e debatidos cuidadosamente: “La invención de América”, do historiador mexicano Edmundo O’Gorman, e “Caliban”, do poeta e pensador cubano Roberto Fernández Retamar. O primeiro foi publicado em 1958, no ano anterior ao triunfo da Revolução Cubana, ocorrido em 1 de janeiro de 1959; o segundo, em 1971, no exato instante em que a Revolução se viu inicialmente contestada por intelectuais que antes apoiavam sem maiores ressalvas o projeto revolucionário.

A colaboração da professora Xing Hongru foi fundamental. Em mais de uma ocasião, ela traduziu meus comentários para o mandarim, produzindo notáveis sínteses críticas que reforçaram a centralidade da tradução para o diálogo transcultural. A tradição literária, aliás, deve muito mais do que em geral se reconhece à tarefa do tradutor.

José Saramago acertou no alvo: literatura universal, se um dia essa utopia tornar-se real, será uma criação sobretudo dos tradutores.

INVENÇÃO E NÃO DESCOBERTA

Pois bem: os olhares-pura-dúvida dos estudantes me levaram a reavaliar todos os cursos que ofereci na China — e, por que não?, também no Brasil. Nada menos do que isso: autêntica lição antropológica de descentramento radical.

Explico.

“La invención de América” é um ensaio tão fascinante quanto complexo e de leitura realmente difícil.

(Mas não se esqueça nunca de Paul Valéry: “O prazer da leitura reside em sua dificuldade”.)

Eis, num resumo brutal, a hipótese originalíssima de Edmundo O’Gorman: do ponto de vista o mais elementar possível, Cristóvão Colombo não “descobriu” um novo continente no fatídico 12 de outubro de 1492 simplesmente porque estava convencido de haver chegado às Índias. E a tal ponto que denominou de índios os povos originários, pois supôs estar na vizinhança da rota das especiarias. Primeiro momento de uma longa história de mal-entendidos que marcou de forma trágica a história moderna.

No caso do “Almirante do mar oceano”, título que exigiu dos Reis Católicos de Espanha, tratava-se da impossibilidade de aceitar a realidade espantosamente nova que tinha diante de si. Encerrado em suas convicções, sequer suspeitou dos olhos livres, imaginados por Oswald de Andrade.

Por isso, a América não foi “descoberta”, porém demandou um longo processo de “invenção”; processo esse que obrigou os europeus a abandonar suas preconcepções, a fim de compreender a radicalidade que tinham ao alcance das mãos.

(Bem isso: mãos que se apropriavam de tudo que podiam.)

Edmundo O’Gorman datou com precisão o fenômeno de “La invención de América”: iniciado em 1492, com a primeira viagem de Colombo, foi concluído em 1507, quando o cartógrafo Martin Waldseemüller elaborou um mapa-múndi no qual um novo continente foi considerado: America, em homenagem a Amerigo Vespucci. Em sua carta Novus Mundus, de 1503, o navegador florentino trouxe à luz o equívoco de Colombo: aquelas terras anunciavam um continente até então desconhecido pelos europeus; elas não eram uma modesta ilha, tampouco um labiríntico arquipélago que caprichosamente obstruía o caminho direto para o Oceano Pacífico, muito menos parte das Índias.

E foi aqui que o problema começou.

(O inesperado fez mesmo uma surpresa.)

ANTROPOLOGIA EM SALA DE AULA

Dilema epistemológico no longínquo século 15; desafio pedagógico no mundo globalizado do século 21. Ao preparar a aula, todos os temas debatidos deveriam convergir para este momento. Confiante, mantive o planejamento: “Ora, na época, acreditava-se que o mundo era composto por três terras (os continentes africano, asiático e europeu), três gentes e, por fim, três mares. Percebem? O mundo seria um espelho da Trindade! Como aceitar, então, uma quarta terra e uma quarta gente, que as Escrituras não mencionavam em passagem alguma? Como entender que o mundo, criado por Deus, não refletiria em sua forma a essência da própria Trindade?”

(Fecho de ouro: quase uma aula parnasiana.)

Pronto: agora ficou claro para os estudantes chineses a dimensão radical da novidade representada pela urgência do processo de invenção da América.

Ou não?

Parei no meio da sala de aula e me vi envelopado por uma miríade de olhos opacos. Repeti a conclusão triunfante: Trindade! Insisti: Trindade?

O que houve?

Finalmente me dei conta do meu erro — Colombo ao rés do chão, também fui vítima de mal-entendido cultural. Para os estudantes da UNNH a noção de trindade, que dispensa explicações na maior parte dos países ocidentais, é alheia à tradição chinesa. E, no fundo, tentar explicá-la “racionalmente” é uma tarefa potencialmente infinita, já que se trata de uma questão de fé religiosa. De modo carinhoso, os estudantes registraram sua perplexidade num vídeo que me comove pela abertura intelectual e afetiva que revelaram à alteridade; no caso, um professor brasileiro ignorante de sua cultura.

Xing Hongru me socorreu e evitou que o tropeço se convertesse em muralha. Ela traduziu o conceito, os estudantes sorriram aliviados e eu aprendi uma lição definitiva.

 RESPIRAÇÃO ARTIFICIAL

Quantas aulas não ministrei no Brasil e nos tantos países que visitei com o apoio de noções naturalizadas, que nunca me dei ao trabalho de questionar? Não foram poucas, mas espero que o tropeço que descrevi tenha sido a última ocasião. No encontro seguinte, começamos a ler “Caliban”, de Roberto Fernández Retamar. O título do ensaio evoca o personagem shakespeariano da peça “The Tempest”. Como ninguém ignora, Caliban é anagrama de canibal, palavra criada por Cristóvão Colombo, fruto de outro mal-entendido.

Gato escaldado, preparei a aula reconstruindo os sentidos do conceito ao longo da história, do século 15 ao século 20: passo a passo, sem me permitir facilidades, o que incluiu uma temerária incursão nos meandros da filosofia hegeliana. No dia seguinte, recebi uma mensagem da professora Xing Hongru, na qual me dizia que os estudantes estavam particularmente felizes com a aula e, por isso, preparam um novo vídeo, capturando com sensibilidade o momento em que rematava a análise: agora, sim, o dialogo se fez pleno.

Para celebrar a pequena vitória, fui a uma tradicional casa de chá em Changsha. E saboreei o chá-verde sem pressa alguma. Os erros amadurecem os que estão dispostos a aprender. Assim promete um provérbio chinês.

 

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