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Universidades do RS trabalham em plano de emergência; capital contrata empresa americana

"As pessoas querem uma bala de prata. Cada lugar vai precisar de uma solução desenhada", diz uma das pesquisadoras
17/05/2024 | 06h40

Por Heloisa Villela*

Mais de 50 cientistas e pesquisadores de diferentes universidades do Rio Grande do Sul estão trabalhando noite e dia para fechar, antes do fim do mês, um plano de emergência climática e ambiental para todo o estado. Eles vão entregar a proposta, de graça, às autoridades. As informações são de Tiago Medina, do site Matinal.

São sugeridas a criação de seis serviços diferentes, três de emergência e três de reconstrução. Se o governo estadual adotar o plano, os cientistas e estudantes de mestrado e doutorado poderão trabalhar como consultores para manter o projeto em funcionamento.

Poucos dias após a inundação do centro de Porto Alegre, o prefeito Sebastião Melo (MDB) anunciou a contratação de uma empresa de consultoria dos Estados Unidos, a Alvarez & Marsal, para trabalhar na recuperação da cidade. Um anúncio que provocou críticas em diversos setores do município.

Por que contratar uma empresa estrangeira se o conhecimento científico do Rio Grande do Sul é mais vasto e mais apto a dar respostas ao problema que o estado e a capital enfrentam? Essa é uma pergunta que o prefeito ainda não respondeu.

Mas o meio acadêmico gaúcho não está esperando pela resposta. Arregaçou as mangas e está correndo com o projeto que pensa no momento atual e especialmente no futuro. Os cientistas e pesquisadores sabem que outras chuvas como a do fim de abril virão, mais frequentes e mais fortes. Por isso, é preciso preparar já os municípios e os cidadãos para responder e minimizar os impactos desses fenômenos.

Márcia Barbosa, física teórica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, é uma das cientistas à frente do projeto. Duas semanas antes da enchente no estado começar, ela deixou um cargo em Brasília para voltar a Porto Alegre onde pretendia, ou ainda espera, concorrer à reitoria da UFRGS.

Ela pediu exoneração do cargo de secretária de Políticas Estratégicas do Ministério da Ciência e Tecnologia e voltou ao estado para se ver mergulhada nos problemas que todos os gaúchos estão enfrentando. Márcia tirou a mãe de um asilo com água pela cintura, carregando uma cadeira de rodas. E sabe que a mãe não poderá voltar ao local por alguns meses.

Assim que as ruas foram tomadas pela água e o centro histórico de Porto Alegre foi alagado, os pesquisadores fizeram o que sabem fazer, disse Márcia. “Começamos a conversar pela internet. Os que tinham luz, os que tinham celular, os que tinham escapado para a praia. O que a gente pode fazer?”.

Rapidamente eles perceberam que era preciso trabalhar em duas propostas básicas. Preparar todo o estado para enfrentar as emergências, que vão se repetir, e reconstruir corretamente.

Quando a água subiu mais do que se esperava, o estado e os municípios não estavam preparados para agir. O grupo do qual Márcia faz parte quer treinar crianças e jovens nas escolas. Preparar bombeiros e funcionários da Defesa Civil. Complementar o trabalho que eles têm que fazer com o treinamento de cidadãos da sociedade civil que, depois de preparados, poderão agir em caso de necessidade.

Foto: Diogo Zanatta/ ICL Notícias

Mas, em primeiro lugar, é preciso ter um sistema de monitoramento eficiente que produza os alertas específicos, para cada município, com um tempo mais curto.

Não adianta dizer hoje que vai chover daqui a uma semana, lembra Márcia, se o céu está azul. Ninguém vai acreditar. A ciência pode produzir essas previsões em prazos menores, em 24 ou 48 horas.

A população precisa ter um plano prévio, saber para onde ir e o que fazer, onde ficam os abrigos seguros, em locais mais elevados.

Universidades trabalham em várias frentes

A outra área de estudo do grupo diz respeito à reconstrução.

“Outro problema que está nos desesperando nessa rede é a reconstrução. Se a gente voltar a construir igualzinho como estava antes, a próxima chuva destrói tudo de novo. E também não adianta ter o desespero de alguns prefeitos que querem mudar de lugar bairros inteiros. Às vezes não é essa a solução. É reflorestamento, é não construir perto do rio e sim reflorestar perto do rio, é ter sistemas de bombas… as pessoas querem uma bala de prata. Cada lugar vai precisar de uma solução desenhada”, diz Márcia.

Os cientistas também estão se debruçando sobre o problema das lavouras. Muitas ficaram debaixo d’água e todo o plantio se perdeu. “Elas vão voltar a plantar à mesma coisa, do mesmo jeito? É óbvio que não pode! Tem que fazer uma combinação de floresta com agricultura. Tudo isso passa por um assessoramento que não está sendo discutido quando vem esse caminhão de dinheiro”, diz a física da UFRGS, se referindo ao volume de recursos do governo federal que vai desaguar no estado.

A preocupação dos pesquisadores é com a necessidade de aplicar corretamente a verba que chegará ao estado, preparar a população, os jovens e crianças, desenvolver um sistema eficiente de monitoramento e alerta e reconstruir corretamente, para evitar novos desastres.

Se usar o conhecimento científico acumulado no estado, o Rio Grande do Sul tem grandes chances de sair dessa crise como um exemplo de planejamento eficiente e de administração das consequências desastrosas da crise climática.

Alvarez & Marsal

Como informa o site Matinal, o prefeito Sebastião Melo (MDB) anunciou que terá a empresa norte-americana Alvarez & Marsal como consultora nas decisões a serem tomadas nas próximas semanas e meses. “Temos que ter uma consultoria pensando sobre tudo, hospital de campanha, questão da saúde — temos 18 unidades de saúde que estão sob água —, escolas sob água, o estrago das vias…”, justificou o prefeito.

Na ocasião, Melo explicou que um grupo da empresa já atuava desde a véspera na capital e, nos dias seguintes, cerca de 20 funcionários chegariam para somar esforços aos técnicos do município.

Ao longo de dois meses, segundo o prefeito, os serviços prestados pela Alvarez & Marsal seriam gratuitos. Mas sinalizou que a atuação deve durar mais tempo.

Até a noite desta quarta (15), o acordo com a consultoria não estava formalizado no Diário Oficial de Porto Alegre, tampouco há informações sobre quanto será pago à empresa.

Matinal teve acesso a um resumo do plano de abordagem que a Alvarez & Marsal já desenvolveu para Porto Alegre. O documento é dividido em cinco partes:

  1. Estruturação do plano e gestão do comitê de crise.
  2. Ações emergenciais e logística de recursos.
  3. Gestão de recursos financeiros.
  4. Regularização das operações.
  5. Alavancas fiscais e tributárias.

O plano é de 100 dias, ou seja, mais tempo do que o período grátis revelado pelo prefeito.

Os funcionários da empresa vão atuar em diferentes secretarias, conforme a reportagem apurou — o que vai ao encontro do que o prefeito tinha anunciado na coletiva do dia 13. “Em um desastre deste tamanho, a prefeitura precisa se cercar de todos os conhecimentos técnicos”.

As primeiras reuniões ocorreram na sede da Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade (Smamus).

A Alvarez & Marsal é uma empresa norte-americana fundada nos anos 1980. Apresenta-se como um agente apto a “elaborar e implementar soluções que melhoram a vantagem competitiva” dos clientes, “atuando como um parceiro e como agente de mudança em períodos de transição e transformação”. Seus serviços anunciados são nas áreas financeira e judicial.

O grupo traz consigo a experiência de ter trabalhado na reestruturação de Nova Orleans em 2005, logo após a passagem do furacão Katrina, que devastou a cidade e matou mais de 1.800 pessoas.

Os trabalhos de reconstrução receberam inúmeras críticas devido ao seu caráter de gentrificação. Segundo a professora de estudos africanos Nghana Lewis, da Universidade Tulane, em entrevista à BBC em 2019, a alta no preço dos aluguéis impediu que muitos moradores retornassem a viver nos bairros em que moravam antes do furacão.

Esse processo foi narrado pelo jornalista Olivier Cyran em artigo publicado na Le Monde Diplomatique Brasil em 2019: “A proporção de afro-americanos em New Orleans caiu de 67% em 2005 para 59% em 2013, uma tendência que está se acelerando.

“Majoritariamente pobres, os “nativos”, como às vezes eles próprios se qualificam, com uma ponta de ironia — uma maneira também de reivindicar a impressionante marca cultural deixada por eles na alma da cidade —, têm se mudado para as periferias ou para ainda mais longe, expulsos pelo afluxo de uma população branca, jovem e endinheirada que levou os preços às alturas”, diz trecho.

Em Nova Orleans, a empresa atuou diretamente na reestruturação financeira e administrativa de 127 escolas públicas da cidade, desenvolvendo um plano de reparos, renovação e reconstrução.

Em sua página, a Alvarez & Marsal orgulha-se dos esforços que permitiram que mais de 35 mil estudantes retornassem às escolas logo após o Katrina. O texto não especifica como foi a relação com professores neste processo.

Cyran, por sua vez, lembra da demissão de 7,5 mil profissionais de ensino, assunto que chegou a virar livro anos mais tarde.

A Alvarez & Marsal informa ter chegado em 2004 ao Brasil, onde hoje conta com escritórios em Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo.

Em janeiro de 2023, em meio à crise por conta do rombo fiscal, a Americanas contratou a consultoria para coordenar seu plano de recuperação judicial. Menos de um mês depois, o sócio da empresa Leonardo Coelho Pereira foi anunciado como CEO da Americanas.

Meses antes, a companhia havia ganhado holofotes no Brasil após ter contratado o então ex-juiz Sergio Moro. À época, quase 80% do faturamento da empresa vinha de empresas que foram alvo da Lava Jato, o que motivou uma investigação do Tribunal de Contas da União.

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