Por Brasil de Fato
O caso Marielle Franco trouxe à tona um tema pouco abordado: os conflitos fundiários urbanos, ou seja a disputa de terras nas cidades. Conforme a investigação da Polícia Federal (PF), a vereadora do PSOL foi morta devido a sua atuação contra um esquema de loteamento de terras em áreas de milícia na zona oeste do Rio de Janeiro. Ela defendia que a área fosse destinada para moradias populares.
Para entender melhor como o fenômeno do urbanismo miliciano impacta a vida nas cidades, o programa Central do Brasil desta quarta-feira (27) conversou com Isadora Guerreiro, professora e coordenadora do Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (Labcidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU–USP).
A professora explica que o avanço das milícias está ligado à lógica de atuação do mercado imobiliário, que trabalha nas franjas urbanas em áreas, que normalmente não seriam passíveis de loteamento por questões variadas, como ambientais ou de infraestrutura urbana. “Justamente por não conseguir legalizar um loteamento nessas áreas, esses loteadores clandestinos acabam fazendo associações como o poder público.”
Membros do legislativo e agentes da prefeitura e da subprefeitura que prestam serviço de fiscalização, por exemplo, se envolvem em esquemas de corrupção, deixando de fiscalizar tais empreendimentos e ganhando algum tipo de propina.
“Deixam esses loteamentos acontecerem em áreas que não deveriam, normalmente frágeis ambientalmente. Depois os vereadores passam a atuar fazendo leis que regularizem essas áreas. Eles trabalham com anistias e com regularização fundiária, dizendo que é pelo bem dessa população que está ali”, explica Guerreiro.
O esquema dos irmãos Brazão, pelo qual a Marielle foi morta, estava dentro dessa prática, que, segundo ela, já é “um esquema conhecido nas cidades brasileiras, mas que no Rio de Janeiro em particular adquiriu uma forma específica, vinculada às milícias”.
‘Urbanismo miliciano’
O avanço das milícias é um agravante para as desigualdades que já existem no meio urbano, segundo a pesquisadora. “É um mercado desregulado e portanto se ganha muito dinheiro com isso, loteando e vendendo lotes. E as milícias não vendem apenas o lotes. Elas também constroem prédios. A gente já viu situações na Muzema, no Rio de Janeiro, dos prédios caírem. São prédios construídos em áreas que não são feitas para construção. Muitas vezes essa construção não é fiscalizada, então ela não segue parâmetros de legislação nenhuma.”
Outro ponto levantado pela professora é a forma como as famílias pagam esses imóveis irregulares. “Essas pessoas gastam toda a poupança familiar. Elas não podem pegar um financiamento público e portanto muitas vezes pagam à vista, poucas parcelas, ou se endividam no mercado informal, no qual as milícias atuam emprestando dinheiro. Na verdade, as pessoas compram algo que os milicianos, por conta da relação que eles têm com os vereadores e com os órgãos de fiscalização, dizem que está legal. De repente, essa área não é legal e pode ser removida a qualquer momento.”
Ela lembra que Marielle lutava contra essa lógica organizando a população de parte da zona oeste do Rio para que não aderisse a novos loteamentos em áreas de milícia. “Era uma briga antiga dos Brazão com a Marielle por conta desse avanço do mercado imobiliário.”
Urbanismo miliciano é o termo que pesquisadores como Guerreiro estão utilizando para caracterizar todo esse contexto difícil de ser superado, uma vez que a milícia é o próprio Estado, salienta. “São agentes da fiscalização, da polícia, vereadores, que se relacionam e portanto fazem do uso da sua prerrogativa pública de fiscalização e inclusive de produção habitacional digna para a população, de regularização fundiária (…) Eles mercantilizam essa prerrogativa pública.”
Trata-se de uma corrupção generalizada, que empurra a população cada vez mais para áreas de risco, ressalta Guerreiro. “Eu vejo que uma saída para isso é a investigação. Casos como esse da prisão dos irmãos Brazão são um indicativo importante de que a justiça está indo atrás de pessoas que fazem isso. E é importante que a população saiba que pode estar comprando algo bastante irregular, vinculado a grupos criminais.”
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