Por Valter Mattos da Costa*
Enquanto servidor público, acompanhei ao longo dos anos os ataques sistemáticos ao funcionalismo no Brasil. Vi de perto a retórica neoliberal demonizando os servidores como privilegiados, enquanto o Estado era sucateado sob o pretexto da austeridade. Vi congelamentos salariais, reformas previdenciárias que retiravam direitos e tentativas de destruir a estabilidade funcional — tudo isso mascarado por discursos de eficiência e modernização, mas que, na prática, apenas ampliavam a precarização dos serviços prestados pelo governo.
Nesta quinta-feira (6), contudo, foi publicado o Decreto 12.374/2025, assinado pelo Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. A medida regulamenta o estágio probatório dos servidores federais, estabelecendo critérios claros para a avaliação de novos funcionários governamentais, reforçando a necessidade de capacitação, qualificação e compromisso com o atendimento ao público. Além disso, o decreto prevê a implementação de um programa de formação e desenvolvimento, garantindo que os novos servidores tenham suporte para desempenhar suas funções com excelência.
Essa medida não apenas moderniza o processo de ingresso no funcionalismo, mas também reafirma um princípio que há muito é alvo de ataques: o serviço público deve ser composto por profissionais qualificados, comprometidos e valorizados. Em um país onde o discurso antipolítica e a demonização dos servidores foram amplamente difundidos nos últimos anos, um decreto que reconhece a importância da estabilidade, do treinamento e da valorização funcional é uma vitória não apenas para os servidores, mas para toda a sociedade.
A política contida nesse decreto representa um contraponto direto à agenda que, durante o governo Bolsonaro, buscou enfraquecer o funcionalismo. Sob a lógica do desmonte do Estado, o governo passado propôs a PEC 32/2020, a famigerada Reforma Administrativa, que visava reduzir a estabilidade dos servidores, abrir brechas para a terceirização e precarizar carreiras essenciais ao funcionamento do país.
Além disso, os servidores enfrentaram anos sem reajustes salariais, enquanto eram alvos de insultos e desvalorização por parte do próprio governo. O congelamento salarial imposto pela LC 173/2020 estrangulou financeiramente milhares de trabalhadores do setor, enquanto a retórica neoliberal os tratava como um peso morto para a economia.
Ao mesmo tempo, assistimos a cortes massivos em áreas estratégicas, como educação, saúde e pesquisa científica, resultando no sucateamento de instituições fundamentais para a população. O IBGE sofreu com falta de recursos, universidades federais tiveram seus orçamentos reduzidos a níveis insustentáveis e setores essenciais, como a saúde pública, viram seus profissionais sobrecarregados e mal pagos.
A grande contradição dessa visão de mundo está na exigência de um serviço governamental eficiente sem a valorização de seus agentes. A classe média e as grandes corporações de mídia, muitas vezes, cobram qualidade e rapidez no atendimento do funcionalismo à população, mas reagem com hostilidade quando os servidores reivindicam melhores condições de trabalho, salários dignos e estabilidade.
O que não entendem — ou fingem não entender — é que um serviço público forte depende de profissionais qualificados, incentivados e reconhecidos. Não há excelência sem valorização. E isso não é uma teoria abstrata: os exemplos concretos de descaso com os servidores e suas consequências estão por toda parte.
No município do Rio de Janeiro, por exemplo, a política do prefeito Eduardo Paes em relação aos servidores da educação municipal é um caso emblemático de desrespeito. A crise na lotação de profissionais nas escolas escancarou a forma negligente com que a Prefeitura lida com os trabalhadores da educação.
O Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) denunciou que a rede municipal enfrenta déficit de professores e funcionários, e a Prefeitura, ao invés de resolver a situação com contratações adequadas e valorização dos servidores, opta por soluções improvisadas e cortes orçamentários.
O problema se agrava com a desorganização e a falta de transparência na distribuição dos profissionais, o que gera um ambiente de trabalho caótico e compromete diretamente a qualidade do ensino. Professores são deslocados sem critérios claros, muitas escolas operam com número insuficiente de profissionais, e o resultado é um impacto negativo direto sobre alunos e educadores.
Eduardo Paes repete o erro dos que veem o funcionalismo como um fardo, mas exigem que ele funcione perfeitamente. A realidade é que, sem investimento em condições de trabalho adequadas, formação continuada e salários justos, qualquer política educacional se torna apenas um discurso vazio. A educação pública de qualidade não se constrói com promessas, mas com servidores públicos valorizados e respeitados.
Por isso, a publicação do Decreto 12.374/2025 deve ser vista como um passo necessário para a reconstrução do serviço público no Brasil. Garantir critérios objetivos para o estágio probatório protege o mérito e a qualificação, mas também reforça o caráter profissional dos servidores, afastando qualquer tentativa de transformá-lo em um instrumento de interesses políticos e privados.
A estabilidade, tão atacada pelos defensores da “gestão moderna”, não é um privilégio, mas um pilar da administração pública. É o que impede que professores, médicos, fiscais e pesquisadores sejam demitidos a cada troca de governo por caprichos políticos.
É o que assegura que o conhecimento técnico seja preservado, que políticas sejam executadas com continuidade e que a máquina estatal funcione em benefício do povo. Sem estabilidade e sem condições dignas de trabalho, o servidor se torna refém de governos que veem o Estado como um balcão de negócios.
Se queremos um país que funcione para todos, precisamos abandonar o fetiche neoliberal de precarizar o serviço público. Um Estado eficiente não se constrói cortando direitos, mas investindo em pessoas. Servidores bem pagos, bem formados e com carreiras sólidas não são um problema — são a solução. E o Decreto 12.374/2025, ao menos, aponta para esse caminho.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História social, todos pela UFF, e doutor em História Econômica pela USP
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