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Lindener Pareto

Professor e historiador. Mestre e Doutor pela USP. Professor de História Contemporânea e Curador Acadêmico no Instituto Conhecimento Liberta (ICL). É apresentador do “Provocação Histórica", programa semanal de divulgação científica de História e historiografia nos canais do ICL.

Victor Noir: jornalismo, amor e revolução na França

A França e os franceses sabem fazer amor e revolução, quem sabe possam, mais uma vez, se valer da memória do jornalista Victor Noir para derrotar o fascismo nas eleições deste domingo.
05/07/2024 | 13h17

Enquanto a combalida França de Macron está às vésperas do segundo turno das eleições para a Assembleia Nacional e a Extrema-Direita encontra caminho livre rumo à maioria (esperamos que não), os historiadores sempre voltamos os olhos ao passado, para que num exemplo histórico, possamos expurgar um pouco os demônios autoritários da história, evidenciando que a luta contra os reacionários é longa, longuíssima e nunca deu trégua.

Peguemos como exemplo um curioso e inusitado caso francês do século XIX. Desde 1852 a França vivia o “Segundo Império”, liderado por Napoleão III – sobrinho de Napoleão I – que num golpe de Estado reimplantou a Monarquia, sepultando os sonhos de liberdade republicanos e socialistas da “Primavera dos Povos” de 1848. Não à toa, Marx chamou Napoleão III (Luís Bonaparte) de golpista e farsante, num texto que até hoje é um dos clássicos da interpretação histórica e política do nosso tempo.

Em todo caso, no auge do desgaste do Segundo Império, uma disputa política entre monarquistas e republicanos eclodiu em jornais rivais da Córsega (pátria dos Bonaparte) e precipitou uma contenda que resultou no assassinato de um jornalista. Vamos aos fatos. No final de 1869, um jornal republicano da cidade de Bastia, na Córsega, chamado La Revanche, atacou a memória de Napoleão I e de toda a família Bonaparte. Um dos sobrinhos de Napoleão, o famigerado príncipe Pierre-Napoléon Bonaparte, também primo do então Imperador Napoleão III, resolveu revidar. Ele rompe seu silêncio na vida política e responde encolerizado através de um artigo publicado no jornal L’Avenir de la Corse, dizendo palavras de ordem e nomeando seus inimigos de “traidores”, sugerindo que deveriam ser massacrados, jogados ao mar e deixados “com as tripas ao sol”.

A disputa se intensifica e ganha escala nacional. O jornal La Marseillaise, de Paris, dirigido por Henri Rochefort, jornalista, futuro deputado e opositor ferrenho do regime de Napoleão III, iniciou uma campanha contra o Império. Rochefort, polemista, republicano provocador, interfere nos assuntos da Córsega e ataca também a memória monárquica e saudosista dos Bonaparte. Pierre Bonaparte, um arruaceiro de marca maior, conhecido por ter cometido crimes na Itália e nos EUA, resolveu desafiar Rochefort para um duelo. Rochefort envia duas testemunhas, que acabam chegando tarde ao ponto de encontro, deixando o duelo em aberto.

Drama em Auteuil, Pierre Bonaparte atira em Victor Noir. A cena do crime recriada em gravura publicada em revista da época. Fonte: Gallica. Domínio Público.

Enquanto isso, outro jornalista originário da Córsega, Paschal Grousset, um patriota corso fervoroso – no entanto anti-bonapartista -, correspondente parisiense de La Revanche e Editor-Chefe da La Marseillaise, também resolve tomar as dores do amigo Rochefort e envia duas testemunhas –  os jornalistas Ulric Fonvielle e Victor Noir – até a casa de Pierre Bonaparte na Rua d’Auteuil (Paris), para tirar satisfação e marcar o duelo. E foi aí que o encontro entre Pierre Bonaparte e as testemunhas de Grousset acabou em tragédia. Há uma série de versões, mas o fato é que durante a discussão, Pierre Bonaparte sacou um revólver e disparou seis tiros, ferindo mortalmente Victor Noir. Era o dia 10 de janeiro de 1870 e Victor Noir tinha 21 anos.

Ao matar um jornalista republicano ligado aos grandes nomes da oposição ao regime de seu primo Napoleão III, Pierre Bonaparte mal podia imaginar que o cortejo fúnebre de Victor Noir se tornaria um grande evento político de republicanos, socialistas e anarquistas. Estima-se que quase 200 mil pessoas tenham acompanhado o funeral, empurrando a carruagem com o corpo de Victor Noir e entoando palavras de ordem e canções contra o Governo monárquico. Compareceram ao funeral figuras como a escritora e ativista anarquista Louise Michel; o ativista Eugène Varlin, entre outros grandes nomes que depois fariam parte da impressionante “Comuna de Paris”, em 1871.

Funeral de Victor Noir. A multidão corta as cordas dos cavalos e arrasta o carro funerário. Paris. 12 de janeiro de 1870. Fonte: Gallica. Domínio Público.

De muitas maneiras, o assasinato de Victor Noir precipitou um forte sentimento de revolta contra Napoleão III e seu governo golpista. A insatisfação geral teria um conhecido desfecho. Em setembro de 1870, o Império Francês é derrotado pelos alemães na “Batalha de Sedan”. Derrotados e humilhados, os franceses veem seu território ocupado pelo Kaiser Guilherme I, que é coroado no Salão de Espelhos do Palácio de Versailles. Ao mesmo tempo, diante da crise, a classe trabalhadora de Paris se levanta contra a humilhada e patética elite francesa, instaurando um dos governos populares e revolucionários mais famosos da história: a Comuna de Paris.

Quanto a Victor Noir, um outro desdobramento fascinante marca ainda a sua história. Em 25 de maio de 1891, seus restos mortais, transformados em um ícone republicano, foram transferidos para o Cemitério do Père-Lachaise. Jules Dalou, escultor e fervoroso defensor da República, criou uma escultura em bronze representando Victor Noir caído, nas condições em que teria sido encontrado após o assassinato. A obra é de um impressionante realismo. Soma-se a isso um interessante culto.

Estátua de Victor Noir no Cemitério do Père-Lachaise em Paris. Foto: Lindener Pareto. Abril de 2024. 

Ao longo dos anos, consolidou-se a crença de que tocar a estátua de Noir – sapatos, a cartola, boca, queixo e partes genitais protuberantes – levaria ao aumento da fertilidade. Desde então, dezenas de milhares de pessoas tocam, deitam e se esfregam na estátua de Victor Noir, fazendo dela um grande símbolo de amor e fertilidade. Convenhamos, cara leitora, caro leitor, a França e os franceses sabem fazer amor e revolução, quem sabe possam, mais uma vez, se valer da memória de Victor Noir para derrotar o fascismo nas eleições deste domingo. Afinal, sem História, amor, tesão e revolução, não há solução.

Detalhe do rosto da estátua de Victor Noir no Cemitério do Père-Lachaise em Paris. Foto: Lindener Pareto. Abril de 2024.

Confira aqui o vídeo de Lindener Pareto narrando a saga de Victor Noir:

https://www.instagram.com/reel/C8u_rymPNFE/?igsh=ZHRxOTNhaTNkcXF4

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