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Valdemar Figueredo (Dema)

Idealizador e coordenador desde 2017 do Observatório da Cena Política Evangélica pelo Instituto Mosaico (www.institutomosaico.com.br). Pós-doutorando em sociologia pela USP. Doutor em ciência política (antigo IUPERJ, atual IESP-UERJ) e em teologia (PUC-RJ). Pastor da Igreja Batista do Leme e da Igreja Batista da Esperança, ambas na cidade do Rio de Janeiro.

Colunistas ICL

A vida é um sopro enquanto a morte ronda de viés

Crônica sobre paredes de vidro no andar da clínica em que a sala das notícias difíceis fica frontal ao berçário na maternidade
22/10/2024 | 07h02

E assim, chegar e partir

São só dois lados

Da mesma viagem

O trem que chega

É o mesmo trem da partida

A hora do encontro

É também despedida…

Composição: Milton Nascimento / Fernando Brant

 

Paredes de vidro. Cuidado, é frágil.

Cariocas não gostam de dias nublados, sussurrou a gaúcha. Corri pelas calçadas estreitas. Chegar primeiro. Dessa vez, foi por pura solidariedade. Vai chover, mas o que importa?

Rumo à clínica médica. Amiga ausente por alguns dias. Sustentada pela tecnologia médica. O motivo da minha pressa não era ela. A vida é a arte do encontro mesmo quando a morte ronda de viés.

Quando a questão é solidariedade e amparo, ninguém chega à frente do Vicente. À porta, ele me aguardava. Soube por ele que o médico logo conversaria com a família. Motivo pelo qual ali estávamos.

Fomos levados a uma simpaticíssima sala. Algo de extremo bom gosto. Jeito humanizado de receber pessoas fragilizadas. O sofá era do tipo fofão. Você senta e ele afunda. Chá, café e água. TV ligada e o controle à mão. Armários embutidos, mognos lustrados.  Contudo, nada me chamou tanto a atenção quanto a parede de vidro.

A parte frontal da sala de convivência dava para lateral do berçário. Detalhe, a parede do berçário também era de vidro. Tudo muito delicado. Recém-nascidos expostos às primeiras espiadas. Pais e avós emudecidos. Fitinhas no pulso dando conta de uma identidade ainda misteriosa. Flashes estourando como fogos comemorativos.

O médico entrou na sala. Digo, na sala de convivência onde a família aguardava boas notícias. Muito educado e solícito. Combinava com o ambiente.

Constatamos nos últimos exames que a nossa querida amiga teve morte cerebral.

O filho quis entender. O marido levantou hipóteses. O choro não vinha. Aquilo não fazia sentido. Era preferível prestar atenção ao termo “cerebral”, porque remetia a uma suposta linguagem médica confusa. Mas todos tinham ouvido o outro termo indesejado.

Orientei a equipe que observem o curso normal das coisas. Em respeito a ela e a vocês não tentaremos nenhum ato heroico. Os aparelhos serão desligados.

Já à porta, com a dura missão cumprida, deu o seu último recado:

Não sei quanto tempo essa situação vai durar, mas tenho certeza de que não haverá sofrimento por parte dela. Saibam que ela não está sentindo dor nem qualquer mal-estar!

Silêncio fundo depois da saída do médico…

Talvez a palavra do profissional para a equipe tenha nos atingido e fomos econômicos nos atos de consolo, sem gestos heroicos.

Salas acústicas. O choro da sala da notícia triste não assusta os bebês do berçário. Por sua vez, o choro da maternidade não vaza, fica lá mesmo.

Desconcertado na sala do acolhimento, desviei o olhar. Tudo vazado. Barreiras de vidro. Avistei gente miúda enrugada. Vida que segue…

A vida se pronuncia com beleza sem nenhum constrangimento.

Grossos vidros emparedando a vida. De um lado o anúncio da morte, do outro a notícia do nascimento. No meio, bem no meio, corredor curto e estreito. Entre a vida e a morte, corredor com corrimão. Passageiros generosos abraçam os pais embasbacados e com os mesmos braços, com os mesmos peitos, abraçam os viúvos e os órfãos.

E vida que segue com gingado triste e surpreendentes dádivas, todas as manhãs!

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