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A extrema direita atual é incondicionalmente fascista? E o neofascismo? Serve apenas à extrema direita? No livro “Neofascism and the Far Right in Brazil” (Neofascismo e a extrema direita no Brasil) recém lançado pela editora Cambridge University Press, o coordenador do Observatório da Extrema Direita e professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora, Odilon Caldeira Neto, analisa três ondas do neofascismo no Brasil, suas articulações com a extrema direita e conexões transnacionais.
Em entrevista à coluna, ele fala em primeira mão sobre o livro e sobre como o neofascismo se aproxima da extrema direita mas também propõe uma radicalização ainda maior, que foca a ruptura com as instituições.
Odilon fala ainda sobre como o neofascismo passou recentemente, de um cão de guarda da extrema direita, acionado nas sombras para engrossar manifestações ou fazer barulho nas redes, para o centro, com a naturalização de símbolos e gestos como o de Elon Musk na posse de Donald Trump.
Você começa o livro dizendo que após a ditadura militar, acreditava-se que não existia mais extrema direita no Brasil e que os anos seguintes foram provando o contrário. Como isso aconteceu? Sempre esteve lá, mas foi ignorada no período de transição pós ditadura militar? Ou essa extrema direita ganha força e se reconfigura acompanhando também o crescimento neofascista no mundo?
Nos primeiros momentos da transição democrática, a extrema direita deixou de ser um grupo político central no cenário político brasileiro. Mas isso não quer dizer que ela tenha deixado de existir. Foi um processo de reacomodação e de um certo tatear sobre as novas possibilidades políticas que se colocavam de um lado como um desafio para essas tendências, de outro também com algumas oportunidades.
Então nesse período existiu um processo de recomposição. Agora, o processo de construção dessas tendências como força política mais organizada, sem dúvida alguma, passam por uma onda política global mais ampla. Então podemos dizer que os ventos que agitam os mares e os ares do extremismo de direita acabam também por movimentar em algum medida os moinhos da extrema direita brasileira nesses anos.
Quais são as características específicas do neofascismo brasileiro? E como se integra com a extrema direita e com o fundamentalismo cristão?
O neofascismo brasileiro, no meu entendimento, passa por algumas fases de complexificação nos anos mais recentes. No primeiro momento, o neofascismo era composto por três grandes tendências: uma que era absolutamente nativa, que era o neo-integralismo; a tendência de um neonazismo mais diversificado; e uma terceira tendência composta pelo negacionismo do Holocausto. Em grande medida, essas três tendências marcam a primeira grande fase do neofascismo brasileiro.
Com o processo da chegada dos meios digitais de comunicação, a utilização massiva da internet e também por um cenário político brasileiro que apresenta uma maior receptividade para a articulação desses grupos, na atualidade eles passam por um processo de transformação. É aí que compõe-se a segunda fase e, potencialmente, uma terceira fase do neofascismo brasileiro, como eu busco desenvolver no meu livro. É justamente o momento em que o neofascismo brasileiro deixa de ter como absolutas as referências nacionais ou as referências do neonazismo e do próprio neo-integralismo.
Isso compõe a chegada de novos tipos de organizações, de novas ideias, de um novo corpus ideológico mesmo. É nesse momento, a partir sobretudo do século 21, que o neofascismo brasileiro manifesta uma certa equivalência ideológica com o neofascismo global. E nesse sentido, algumas pontes são consolidadas com a extrema direita brasileira. São grupos que não raramente articulam uma certa noção exclusivista de nacionalidade, uma noção comum de leitura sobre a sociedade brasileira, sobre seus mitos de origem, seus mitos de fundação e um apelo a determinados grupos sociais.
Vai existir aí uma interseccionalidade com a extrema direita de uma maneira mais ampla, aqui entrando não apenas o fenômeno de construção do próprio bolsonarismo, mas outras tendências como o militarismo, o autoritarismo brasileiro, alguns grupos políticos que se aproximam dessas tendências como o Prona, do dr Enéas Carneiro e assim por diante.
O fundamentalismo cristão tem sido um elemento presente na extrema-direita brasileira ao longo da história, porque a extrema direita brasileira fala no resgate da centralidade de uma religiosidade forjada não somente no cristianismo, mas particularmente no catolicismo. Então existe uma certa relação, né? Com a forma como a extrema-direita imagina a sociedade brasileira. E sendo o neofascismo um elemento presente dentro das diversas tendências à extrema direita, existem alguns princípios de sociabilidade e de integração de pautas.
Agora, em linhas gerais, o neofascismo é uma expressão política mais radical. Ele vai operar ladeando o sistema político, ladeando projetos políticos partidários ou mesmo lideranças que se integram nos sistemas ou nos processos eleitorais, mas vai sempre buscar uma forma de ruptura com a ordem democrática liberal, com as instituições e assim por diante. Então, essa visão, ainda mais radical, de um campo já radical, vai promover possíveis dissonâncias no campo da extrema-direita.
Não é raro encontrar grupos neofascistas que criticam o uso desses procedimentos institucionais da democracia, que criticam outras lideranças das direitas radicais e assim por diante, porque eles querem subir o tom e intensificar as demandas presentes no campo amplo da ultradireita brasileira.
Assim, por mais que existam vários elementos e vários episódios de congregação com as forças do campo da ultra direita, há frações e tensões entre as organizações do neofascismo brasileiro e outras tendências das direitas radicais ou mesmo da extrema direita.
Existe uma ideia geral de que a extrema direita e o fascismo querem voltar ao passado. Como você vê isso?
O neofascismo tem um culto ao passado, que pode ser tanto o culto ao elemento histórico dos movimentos, regimes e ditaduras fascistas, como pode ser também um culto a um passado idealizado pelas organizações neofascistas e também pela própria extrema direita. E uma certa idealização de um passado perdido, uma ideia de nação, uma ideia de sociedade, uma ideia de centralidade heteropatriarcal que em algum momento foram perdidas. E essa perda é construída com uma leitura de um processo catastrófico, de degeneração em que as minorias, ou os grupos ideologicamente oposicionistas, o feminismo, enfim, em que tendências prejudiciais à unidade nacional teriam estabelecido perdas dessas referências.
Então, o passado é um ponto de encontro para essas tendências, mas é um ponto de encontro de uma maneira bastante particular, porque o próprio fascismo histórico construía um passado para tentar pensar uma ideia de futuro, uma ideia de eternidade. Existe toda uma semântica das temporalidades nos fascismos e, por extensão, no próprio neofascismo. Esses grupos vão ler os tempos recentes em torno dessa chave interpretativa da degeneração. Eles olham o passado de uma maneira idealizada, não buscando retornar a esse passado idílico, mas sim encontrando nesse passado alguns lampejos para um processo que eles entendem como regeneração. E a regeneração aqui pode ser um processo de branqueamento da sociedade, um processo da construção do supremacismo do branco, do separatismo, do machismo, da misoginia e assim por diante.
Eles querem construir um futuro, acho que é importante notar isso. No campo do neofascismo existe uma ideia, um pouco difusa, às vezes muito mal acabada, de futuro. E uma particularidade do neofascismo é que ele também se alimenta de ideias que querem acelerar as vicissitudes e as tendências fratricidas da atualidade como uma certa forma de intensificação desses processos de regeneração.
É aquilo que tem no próprio campo do aceleracionismo um pouco das suas ideias fundamentais. Ou seja, é necessário intensificar algumas rupturas causadas pela própria modernidade capitalista para que as tensões e as tendências fratricidas na sociedade brasileira e global se tornem tão antagonistas que seja possível construir uma ideia de futuro onde existe um retorno de um passado, com a recentralização do homem branco ou de um projeto político efetivamente autoritário.
Como e quando o neofascismo brasileiro se integra ao movimento internacional e qual foi a importância da eleição de Bolsonaro para o neofascismo no Brasil?
O crescimento e a internacionalização do neofascismo brasileiro passa por diversas razões. Não me parece que seja apenas um fruto do fenômeno do bolsonarismo. Eu diria que isso inclusive antecede a própria formação do bolsonarismo. Os grupos vão buscar novas ideias, vão dialogar, trocar referências intelectuais e novas práticas, novas estratégias com o campo do neofascismo internacional.
Isso passa por um cenário da facilidade comunicacional, a utilização das redes sociais, desde os fóruns de e-mail, na passagem para os anos 2000, até um certo cenário global de maior receptividade. Há também uma agência da extrema direita norte-americana em um cenário que antes era fundamentalmente centrado na Europa. Isso é importante porque fomentou a presença e demandou a presença de grupos brasileiros.
Esses grupos já estão se manifestando mais plurais no momento que se constrói as novas direitas no Brasil e posteriormente o próprio bolsonarismo. E é justamente pelo fato de que essas discussões, essas tendências, já têm uma característica de formação e de atualização, que eles conseguem inclusive auxiliar a própria formação do bolsonarismo e participar de algumas das bases radicais do bolsonarismo. Me parece equivocado entender o fortalecimento do neofascismo brasileiro como subproduto do bolsonarismo. São dois movimentos, duas tendências, que acabam se encontrando.
O próprio bolsonarismo caminha num sentido muito amplo de integração de pautas, demandas e representatividade da extrema direita global, assim como o neofascismo brasileiro. Então, essas duas tendências crescem a partir de uma interlocução transnacional e acabam se entrecruzando e sendo muito úteis para ambas, porque muitos desses grupos do neofascismo vêm em Bolsonaro um possível representante, um aliado interessante sem que se transformem, prioritariamente, em bolsonaristas.
Da mesma maneira, os campos mais radicais do bolsonarismo fazem acenos ao neofascismo, sem que o próprio bolsonarismo se transforme, fundamentalmente, em uma tendência neofascista.
Tem um jogo de ganha-ganha para ambas as partes. E isso não é uma particularidade do bolsonarismo. Acontece em outros lugares, por exemplo nos Estados Unidos. Acho que o fenômeno do trumpismo é muito ilustrativo nesse sentido. À medida que o bolsonarismo prescinde em grande medida das instâncias institucionais, não criou um partido e assim por diante, essas bases da extrema direita, particularmente o neofascismo são úteis para o bolsonarismo. E o neofascismo, justamente por prescindir também desse aparelho institucional, tem à sua disposição uma grande diversidade de estratégias, de ideias, de subfamílias, digamos assim, e também de espaços de articulação.
E já existe um resgate nítido, aberto, à luz do dia, de pressupostos do fascismo histórico. Desde o uso de palavras-chaves, ideias, slogans. O próprio bolsonarismo foi muito hábil nesse sentido, ao fazer o uso do Deus, Pátria e Família, que foi o grande lema do movimento integralista.
Ou, mais recentemente, dessa noção de perseguição a minorias que carregam consigo uma ideia do supremacismo branco e trazem também o uso de exterioridades inclusive da ritualística, do ponto de vista do gestual como trazido por figuras como Steve Bannon, como Elon Musk e assim por diante. Isso demonstra que o neofascismo, até recentemente era entendido como um cão de guarda para as direitas radicais, que podia atacar as esquerdas em manifestações, que podia ser mobilizado em momentos que as manifestações nas ruas eram necessárias.
Nos anos mais recentes, é possível notar que os elementos ideológicos e simbólicos do fascismo já estão presentes na exterioridade desse campo da extrema direita mais ampla.
Meu entendimento e a minha contribuição por meio desse livro é que o debate sobre a extrema direita atual precisa passar também pelo debate sobre os fascismos. Desde um problema de memória, mas também um problema político e ético, que é a presença dos resgates dos fascismos no cenário político institucional nos tempos mais recentes.
Pode falar um pouco mais sobre o livro?
O livro está estruturado em dois grandes argumentos. O meu primeiro argumento é que o neofascismo no Brasil é um fenômeno tardio se for colocado em comparação com a história do neofascismo de uma maneira global. Desde 1945, isso é, desde o momento do imediato após a Segunda Guerra Mundial, existiu uma articulação transnacional de grupos que vão lidar com o passado fascista tentando fazer uma espécie de comemoração desse passado, que querem garantir a continuidade política para os regimes fascistas, ou mesmo que vão se articular ideologicamente a partir dessas referências. Em último caso, existirá também aqueles que vão negar o holocausto como uma forma de comemoração ou de expiação da culpa dos fascismos e particularmente do nazismo. Ao contrário desse fenômeno, que que ocorre em vários continentes desde 1945, no Brasil ele vai se desenvolver com uma certa autonomia, ou seja, com maior grau de maturidade política, de articulação política, somente no momento da transição democrática.
Isso porque o próprio regime ditatorial deixou poucos espaços para as organizações inspiradas no fascismo. Então o meu argumento inicial é uma análise sobre esse caráter tardio do neofascismo e a partir desse caráter tardio eu busco sistematizar três ondas de complexificação ou de desenvolvimento do neofascismo brasileiro. Uma que era baseada no negacionismo do holocausto, no neonazismo e do neointegralismo, que é a primeira fase, e uma segunda fase e uma terceira fase, que é a fase atual, onde o neofascismo vai se manifestar de modo mais diverso e ser inclusive reconhecido de uma maneira global junto aos seus pares.
A partir do século 21, existe essa segunda fase e atualmente uma terceira onda do neofascismo, onde são colocadas novas ideias, novas estratégias, novas tendências ideológicas, inspirado por tendências da nova direita francesa, inspiradas por um círculo intelectual mais amplo, com uma relação transnacional não apenas existente na América Latina, mas também na Europa, na Rússia, nos Estados Unidos e assim por diante.
E na atualidade as próprias estratégias desses grupos se manifestam de uma maneira mais intensa, inclusive com algumas novidades como a intensificação do uso de táticas terroristas, de tendências do terrorismo presentes no campo do neofascismo brasileiro.
Isso demonstra que, embora tardio em comparação com o desenvolvimento em outros países, o neofascismo brasileiro se manifesta em grande medida em um sentido de equalização. Esse é o primeiro grande argumento do livro.
O segundo argumento é o processo de interlocução desse neofascismo com a formação das chamadas
novas direitas, com as direitas radicais, chegando até o bolsonarismo. Eu entendo que o neofascismo é um movimento que se desenvolve com uma certa autonomia, mas também que auxilia
a formação da radicalização do bolsonarismo. Existe um sentido de troca entre essas tendências.
Em alguns momentos o bolsonarismo faz acenos para setores do neofascismo e o neofascismo em alguma medida reconhece algumas tendências ou mesmo a figura de Bolsonaro como possível representante dos seus anseios, só que são tendências que não são a mesma coisa. O neofascismo é uma parte do universo da extrema direita e vice versa.
Então eu tento analisar esse neofascismo nesse segundo grande bloco interpretativo do livro como uma tendência que vai em alguma medida colaborar um fenômeno, colaborar para a formação e para a capacidade política de um fenômeno ainda mais plural, que são as novas direitas, que é o extremismo de direita no Brasil, e que é também formado por tendências globais.
O livro está disponível para download em inglês aqui
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